a conversa sobre i.a. na sua equipe já começou (sem você)
como encontrar e conectar os pequenos grupos que realmente definirão o futuro do trabalho na sua empresa
a automação com i.a. não é mais uma questão de 'se', mas de 'como'. e essa conversa já acontece na sua organização. não nas reuniões formais, mas no não-dito que paira sobre as equipes — um cálculo silencioso de risco e oportunidade. o desafio não é começar uma conversa, mas criar um lugar seguro para que as conversas que já existem possam se conectar.
leia também:
estando em uma posição de responsabilidade, você provavelmente já sentiu que, quando a conversa acontece, ela costuma cair em duas armadilhas. ambas frágeis.
de um lado, a promessa frágil: a garantia bem-intencionada de que "ninguém será demitido", que se quebra ao primeiro contato com a realidade, destruindo a confiança.
do outro, a transferência de risco: a mensagem brutal de "se vira, o problema é seu", que torna os indivíduos frágeis e isolados, minando a coesão da equipe.
o que as duas armadilhas têm em comum? ambas tratam uma mudança complexa e humana como um problema técnico a ser resolvido com uma única resposta. tratam as pessoas como espectadoras de um futuro inevitável.
isso exige um outro jeito de caminhar. um que troque a busca por um roteiro pré-definido pela criação de um ecossistema de experimentos. um ambiente vivo, que aprende e se adapta.
esse caminho pode começar a ser construído a partir de três práticas fundamentais:
1. os círculos de aprendizagem: motor da exploração.
tudo começa ao identificar e dar palco aos "pioneiros": aquelas pessoas na sua organização que, por curiosidade própria, já exploram as novas ferramentas de i.a.
o papel delas não é ser professor, mas o catalisador dos primeiros "círculos de aprendizagem".
esses círculos são pequenos grupos seguros, com diversas perspectivas, onde a exploração acontece de fato. o convite prioritário para participar vai para as pessoas em funções mais expostas à automação, com os pioneiros atuando como mentores. cada círculo designa um representante para levar suas descobertas e tensões ao fórum de transição, garantindo que a energia da base tenha um canal formal para influenciar a estrutura.
a cadência de cada círculo é autônoma, mas um modelo híbrido poderia funcionar bem: encontros síncronos curtos (semanais ou quinzenais) para debates e alinhamento, e um canal de comunicação assíncrono para o trabalho do dia a dia, como compartilhar descobertas, documentar experimentos e tirar dúvidas rápidas. o síncrono serve para a conexão, o assíncrono para a exploração contínua.
o ponto de partida de cada círculo não é imposto, mas uma escolha baseada em seu contexto. aqui, a pressão por inovação e a necessidade de alívio coexistem, e cada grupo tem autonomia para decidir seu primeiro passo.
para um time sobrecarregado, o primeiro experimento pode ser a "operação faxina". a intenção é arrumar a casa antes de redecorar.
o caminho mais comum para isso seria fazer a pergunta que parece óbvia: "o que é inútil por aqui?". essa, no entanto, é uma pergunta perigosa. como explorei em um texto anterior sobre as armadilhas da eficiência, nosso julgamento sobre a real função de cada processo costuma ser frágil.
o que parece 'ineficiência' pode ser, na verdade, uma redundância que protege o sistema de um erro em cascata, ou o tempo ocioso que permite conversas informais que fortalecem a confiança da equipe. ao removermos o que não compreendemos plenamente, corremos o risco de tornar o sistema mais vulnerável a choques inesperados.
por isso, a missão da 'operação faxina' é trocar esse julgamento por um experimento seguro: "qual é o menor e mais reversível processo ou relatório que podemos suspender por duas semanas para observar o que acontece?".
se ninguém sentir falta e o sistema não piorar, ele é eliminado. se houver um impacto negativo, o grupo aprende algo valioso sobre uma função antes invisível daquele processo, e ele pode ser restaurado. isso gera uma vitória rápida, libera tempo real e cria a coesão de um grupo que melhorou seu próprio ambiente, não com base em julgamentos, mas em evidências.
para outro círculo, talvez um composto pelos "pioneiros" mais curiosos, o ponto de partida pode ser um experimento direto com i.a. para resolver um problema real, como "analisar os feedbacks de clientes deste mês".
as duas abordagens não são excludentes, mas esteiras que podem correr em paralelo dentro da organização. um círculo pode começar com a faxina e, ao liberar tempo, migrar para a exploração de i.a. outro pode começar com a i.a. e usar seus aprendizados para identificar processos a serem eliminados. o propósito do ecossistema não é ditar um caminho único.
2. o fórum de transição: arena de negociação.
o que acontece com as descobertas dos círculos? elas alimentam o fórum de transição.
este é um espaço formal, com representantes das equipes, cujo propósito é claro: negociar os impactos da automação. não é um comitê para diluir responsabilidade, mas uma arena para gerir conflitos de interesse de forma produtiva. o processo não depende de um facilitador treinado, mas de um conjunto de regras simples que distribuem essa responsabilidade. por exemplo, o uso de rodadas de fala onde cada pessoa tem tempo igual para se expressar sem interrupção, garantindo que as vozes mais vulneráveis na sala tenham o mesmo espaço que as mais poderosas. a responsabilidade pela segurança psicológica é do grupo, sustentada pelo processo, não por um indivíduo.
aqui, a conversa muda. um círculo descobre que 40% do tempo de uma função pode ser automatizado. a pergunta do fórum não é "como cortamos custos?", mas sim "ótimo. como usamos essas 16 horas semanais para desenvolver uma nova capacidade que hoje não temos tempo para construir?".
e se a função inteira for ameaçada? imagine um criador de conteúdo.
o fórum não discute a demissão. a conversa, que inclui a própria pessoa, começa por outro ângulo: "olhando para o que você faz bem, quais são suas habilidades essenciais? a capacidade de entender o público, de contar uma história, de ter pensamento crítico. como podemos usar essa essência em novas funções, talvez em estratégia de marca ou experiência do cliente?".
a partir dessas opções, a escolha é da pessoa, mas a conversa é estruturada em duas etapas para garantir uma decisão robusta:
filtro de sustentabilidade: a primeira pergunta foca em realismo e bem-estar. "destes caminhos, qual deles parece o menos desgastante? qual você consegue se imaginar carregando no longo prazo sem se quebrar?"
teste de opcionalidade: depois de filtrar as opções sustentáveis, a segunda pergunta foca no futuro. "certo. e entre estas, qual delas te dá a melhor chance de aprender uma habilidade concreta e abrir mais portas no futuro?"
esse processo substitui uma busca frágil por "paixão" por uma decisão pragmática sobre sustentabilidade e evolução. para proteger essas decisões da nossa tendência ao otimismo, o fórum conta com um "advogado do diabo".
esta não é uma função amadora. é um papel assumido por alguém de uma área adjacente, que não tenha interesse direto no resultado do plano, garantindo independência. a escolha é feita pelo próprio fórum, a partir de uma lista de voluntários. o papel dessa pessoa não é ter as respostas, mas garantir que as perguntas difíceis sejam feitas. sua função é investigar, consultando a pessoa envolvida, especialistas e até fontes externas, e então apresentar os riscos encontrados ao grupo, usando as duas perguntas essenciais como um guia:
para o sistema: qual é o principal risco não intencional deste plano para a equipe ou para a empresa, tanto se der certo quanto se der errado? (isso inclui impactos na moral, na reputação da iniciativa, em processos e custos ocultos).
para o indivíduo: de que forma este caminho pode se tornar uma armadilha ou uma fonte de esgotamento, em vez de uma oportunidade? (isso investiga o impacto na identidade, no bem-estar e na sustentabilidade da carreira da pessoa a longo prazo).
o parecer do advogado do diabo não é um veredito, mas o gatilho para uma sabatina, onde o fórum inteiro é forçado a debater os riscos levantados e a fortalecer o plano coletivamente. o plano só avança quando o grupo, e não apenas o advogado do diabo, estiver satisfeito com as mitigações e tiver a autoridade para pausar o processo até que isso aconteça.
e como as pessoas se desenvolvem para essas novas funções? a resposta padrão, o "treinamento", costuma ser uma armadilha. a alternativa é um caminho de evolução, negociado no fórum:
passo 1: identificar talentos e interesses práticos.
passo 2: aprendizado pareado com um especialista.
passo 3: ambiente seguro de prática com projetos de baixo risco.
passo 4: comunidades de prática para que ninguém passe pela transição sozinho.
mas e quando, mesmo após esgotar as tentativas, não há uma oportunidade interna viável? este é o teste definitivo do sistema. aqui, a conversa no fórum muda de uma negociação de transição para uma negociação dos termos de uma saída.
não se trata de fingir que uma perda é uma oportunidade. a conversa reconhece o conflito de interesses: a organização tomou uma decisão para sua sobrevivência que tem um custo alto para o indivíduo. o apoio, nesse caso, não é um pacote padrão, mas uma forma de a organização compartilhar o risco que ela mesma criou.
isso pode se traduzir em um "orçamento de transição" que a pessoa pode usar com autonomia — seja para se requalificar, para ter uma pista financeira segura ou para transição no mercado — e no apoio ativo da organização para usar sua rede de contatos e quem sabe ajudar na recolocação.
a forma como a primeira pessoa é desligada por automação define a credibilidade de todo o ecossistema para os que ficam.
3. as regras de segurança: a constituição do ecossistema.
para que as pessoas nos círculos se sintam seguras para explorar e o fórum tenha legitimidade, o ecossistema precisa de uma base de confiança. essa confiança não vem de boas intenções, mas de regras com consequências.
sejamos claros: a implementação dessas regras é um ato político. ela representa uma cessão deliberada de poder da gestão tradicional para um processo coletivo. é a criação de um acordo prático para coexistir e navegar a incerteza, reconhecendo que os interesses da organização e dos indivíduos nem sempre estarão alinhados.
os princípios precisam ser diretos e intuitivos.
por exemplo:
"a prioridade da organização é esgotar os caminhos para o desenvolvimento interno antes de buscar soluções externas."
“cargos e funções só serão transformados após um plano de transição ser discutido e validado no fórum.”
na prática, a regra mais importante funcionaria como um disjuntor: nenhum projeto de automação receberia orçamento sem antes apresentar um "plano de transição de pessoas" aprovado pelo fórum.
isso não "pode significar" algo. isso significa que a energia (o dinheiro) para o projeto é cortada se o circuito de segurança (a conversa humana) não estiver fechado primeiro. isso dá poder real ao processo e garante que o lado humano não seja uma reflexão tardia.
isso não é um plano infalível. é um convite para você, que está em uma posição de influência, deixar de ser um arquiteto de planos frágeis para se tornar o guardião de um sistema robusto.
não se trata de ter um mapa do futuro para apresentar às suas equipes.
trata-se de defender um processo que dá a elas uma bússola e as ferramentas para construir um barco mais seguro, sabendo que a neblina é densa e a tempestade é certa.
um experimento de cada vez.


