armadilha com "vibe-coding"
como a obsessão por velocidade nos torna reféns da fragilidade
tenho observado um padrão curioso na forma como software tem sido construído ultimamente, especialmente com a ajuda de ferramentas de ia generativa. o processo é guiado pelo que foi batizado de "vibe-coding": um fluxo contínuo de pedidos em linguagem natural que moldam uma interface, enquanto, nos bastidores, a ia vai tecendo a lógica de negócio.
a questão central, no entanto, não me parece ser o "vibe-coding" em si. ele é a manifestação de um impulso antigo que agora encontra uma via expressa. desenvolvedores que, no passado, saíam codificando uma funcionalidade atrás da outra sem pausas para reflexão são os ancestrais diretos de quem hoje usa essas novas ferramentas da mesma forma.
o ponto é que essa prática, antes restrita a quem sabia codificar, agora está disponível para muito mais gente e numa velocidade de geração que amplifica as consequências.
eu mesmo uso essas novas tecnologias e formas de criar produtos. já me vi seduzido apenas pela velocidade e caí nas armadilhas que descrevo aqui. as propostas que faço não são uma teoria distante, mas uma tentativa de lidar com meus próprios impulsos e com as fragilidades que já criei.
a promessa é sedutora. parece a concretização de um desejo antigo de remover todo o atrito entre a ideia e a sua materialização. a velocidade é inegável e, para criar provas de conceito ou pequenos cruds experimentais, a abordagem tem seu lugar. o risco emerge quando essa prática transborda do playground para o desenvolvimento de produtos dos quais outros dependem, ou quando as provas de conceito começam a ser levadas a sério sem uma revisão fundamental.
"vibe-coding" é sobre execução, para gerar o código, e não para a estratégia de produto.
ao deixar a ia "inventar" as regras à medida que os pedidos são feitos, estamos, na prática, construindo um sistema sem um mapa. cada nova funcionalidade é um cômodo anexado a uma casa sem planta baixa. a crítica aqui não é um apelo a planos rígidos e detalhados – que também são uma fonte de fragilidade ao se chocarem com a realidade –, mas um alerta sobre a ausência de princípios e acordos mínimos que guiem a construção.
é como pedir a um programa de computador para decidir o que fica numa mudança de uma casa sem consultar a família. ele pode até organizar os itens de forma 'lógica', mas ignora o debate sobre o que é importante para as pessoas. da mesma forma, ao pedir que a ia defina as regras, não eliminamos a necessidade de fazer escolhas difíceis; apenas escondemos essas decisões dentro de um código que ninguém debateu, trocando a conversa que realmente importa por uma complexidade oculta.
com o tempo, a estrutura se torna incoerente e frágil, transformando seus próprios criadores em reféns de um sistema misterioso. aqui, a assimetria é brutal: a conta do erro nunca chega para a ia. ela não será acordada de madrugada quando o sistema que ela especificou falhar.
a responsabilidade, com todo o seu peso, recai inteiramente sobre os ombros de quem tem algo a perder: os humanos que precisam gerenciar o produto e, de forma ainda mais ampla, aqueles que sofrem os efeitos de suas decisões invisíveis. uma ia pode ser instruída a otimizar o engajamento e, sem um debate crítico, criar um produto que deixa seus usuários viciados e frustrados, em vez de satisfeitos. a responsabilidade por essa consequência, que nunca foi discutida, é inteiramente nossa.
isso se torna ainda mais crítico para quem não entende o código gerado, mas mesmo o especialista, diante de uma complexidade que ele não acompanhou, pode se sentir alienado e sem disposição para auditar o que foi feito.
o que me parece mais profundo, no entanto, não é a falha da ferramenta, mas o que seu uso revela sobre nosso próprio impulso. a tentação de pular a etapa da reflexão — do pensamento crítico sobre o que estamos fazendo e, talvez mais importante, sobre o que decidimos não fazer — é enorme.
o atrito que as ferramentas prometem eliminar não era apenas um obstáculo técnico; era também um espaço não intencional para a deliberação. era o espaço onde o entendimento compartilhado era forjado. ao terceirizar a especificação, roubamos do time a oportunidade de construir sentido coletivamente, de debater e internalizar a lógica do que está sendo criado. o time se torna um mero executor de um plano que não ajudou a conceber, frágil e despreparado para adaptar-se quando a realidade, inevitavelmente, se desviar do roteiro. essa promessa de fluidez ignora as limitações práticas da tecnologia atual — de janelas de contexto a vieses de treinamento — que tornam o código gerado, por si só, uma fonte de fragilidade.
ao nos entregarmos ao fluxo do desenvolvimento por impulso, trocamos a intencionalidade pela reatividade. abrimos mão da robustez que vem de saber o que se está construindo, em favor da gratificação imediata de ver algo aparecer na tela. aqui reside a assimetria do risco: trocamos um ganho pequeno e visível — a velocidade da prototipação — por um risco de perda enorme e oculto — um sistema frágil que pode entrar em colapso quando mais precisarmos dele. a realidade, muitas vezes, nos mostra que a robustez nasce justamente das restrições e do esforço deliberado, não da sua ausência.
isso não significa que devamos abandonar essas ferramentas. ao contrário, talvez o convite seja para mudar a nossa relação com elas. muitas vezes, só descobrimos o que queremos ou o que é possível ao começar a fazer. o "descobrir fazendo" não é um problema, é a única forma de navegar na incerteza. a questão é como fazemos isso. podemos usar a ia como uma executora cega de tarefas ou como uma interlocutora crítica que adiciona estrutura ao nosso processo de descoberta.
a partir dessa reflexão, me vêm à mente duas pausas deliberadas para qualificar esse processo.
a primeira pausa é a especificação mínima assistida, um exercício primariamente individual. antes de construir um produto, o propósito é usar a ia como uma parceira crítica. é um processo estruturado que nos força a considerar soluções alternativas, a identificar riscos e, crucialmente, a definir o que será intencionalmente deixado de fora. em vez de buscar uma análise única, a usamos para gerar cenários plurais que nos obrigam a escolher e a articular nossas premissas sobre o contexto — quem servimos, qual propósito, que suposições e evidências já temos, e quais princípios queremos manter ou evitar. essa clareza não é um freio, mas um acelerador.
ela permite uma execução focada, viabilizando a criação de protótipos funcionais que podem ser testados rapidamente com pessoas reais. pular essa etapa em nome da velocidade imediata quase sempre cobra um preço alto mais tarde: tempo perdido para reconstruir funcionalidades complexas e mal integradas, ou um produto final frágil, com regras que mais atrapalham do que ajudam. o valor dessa pausa, portanto, se realiza no contato com a realidade. a verdadeira prova de estresse de uma ideia não vem da conversa com a máquina, mas de observar como o protótipo que ela ajudou a construir se comporta — e falha — nas mãos de seus usuários.
a segunda pausa é a sumarização retroativa, se torna um confronto com essa realidade. o mecanismo não é pedir um resumo único, mas usar a ia para criar duas visões a partir da única fonte da verdade: o código-fonte.
lente de estratégia: um sumário em linguagem natural das funcionalidades e regras de negócio que foram de fato implementadas, para ser discutido por todos.
lente de risco técnico: um diagnóstico das áreas de maior complexidade e fragilidade.
o valor não está em manter essas visões separadas, mas em sobrepô-las. a discussão se torna mais rica ao identificar onde uma regra de negócio crítica é suportada pela parte mais frágil do código. é nesses pontos de intersecção que costuma morar o risco real.
a partir daí, a conversa se volta para a subtração e simplificação em várias camadas: quais funcionalidades podem ser removidas ou simplificadas para melhorar a experiência? quais regras de negócio se tornaram desnecessárias ou podem ser repensadas? e, por consequência, que partes do código podem ser removidas ou simplificadas? a robustez do sistema é alcançada não por adição, mas por essa remoção criteriosa.
ambos os caminhos são tentativas de criar uma fonte da verdade que antecede o código. um mapa compartilhado e deliberado que guia tanto a nós quanto a ia, evitando que a lógica do sistema se torne um acidente. essa busca talvez aponte para uma convergência que já vemos acontecer: a fusão do vibe-coding com plataformas visuais de no-code. contudo, seria um erro acreditar que um mapa visual, por si só, resolve o problema fundamental. o mesmo impulso reativo que hoje gera um código inchado pode amanhã criar um fluxo visual igualmente complexo e frágil.
por isso, estas pausas deliberadas não são uma fórmula para o processo perfeito. são, na verdade, um acordo prático e frágil para coexistir com a nossa própria natureza falível, não uma cura. elas não buscam eliminar nosso impulso pela velocidade, algo talvez inalcançável, mas sim mitigar seus piores danos. são práticas para nos lembrar constantemente da nossa propensão ao erro e ao autoengano.
a tarefa passa a ser menos sobre a velocidade de codificar e mais sobre a coragem de subtrair. é sobre entender o problema a ponto de saber o que não fazer, definir as regras mínimas para a convivência e orquestrar as pausas que nos forçam a perguntar: "isto é realmente necessário?".

