gestão de desempenho: o modelo de avaliar e desenvolver pessoas nasceu quebrado
um convite para experimentar um sistema leve de sinais para a saúde da operação, das parcerias e do desenvolvimento
nota de revisão: para quem acompanhou a primeira versão deste texto, esta atualização representa um aprofundamento em sua filosofia. a mudança central foi um refinamento naquilo que o sistema busca medir.
em vez de tentar capturar um julgamento subjetivo sobre um conceito abstrato (como o vago termo "engajamento"), o sistema agora foca em coletar a percepção subjetiva sobre condições e eventos concretos do dia a dia – como clareza, autonomia, apoio e recuperação.
esta transição de um único sinal agregado e ruidoso para um conjunto de sinais mais específicos e limpos não abandona a subjetividade; pelo contrário, a leva a sério. ao reduzir a distância entre a experiência vivida e o relato, a intenção é obter dados que sejam, paradoxalmente, mais confiáveis e válidos.
além disso, abandonei o cálculo de médias por um olhar sobre a distribuição dos dados, percentil 10 e percentil 90. o perigo da média é sua capacidade de criar uma ilusão de centro, mascarando as tensões reais; um time dividido entre extremos de satisfação e insatisfação pode ter a mesma "nota" que um time uniformemente apático, tornando-nos cegos para os conflitos.
no meu texto sobre os perigos da avaliação de desempenho, explorei como os modelos tradicionais podem ser falhos, enviesados e pouco eficazes. a busca por objetividade em um processo inerentemente subjetivo muitas vezes nos leva a criar rituais pesados que mais atrapalham do que ajudam.
mas então, como podemos acompanhar a saúde de um time e a qualidade das parcerias sem cair nessas armadilhas?
a proposta que apresento aqui se afasta da lógica de "avaliar para julgar" e se aproxima da ideia de "sentir para agir". a intenção é criar rituais leves e frequentes que funcionem como catalisadores para conversas importantes.
o que apresento a seguir não é um framework rígido.
encare o sistema como um todo como um ponto de partida para um experimento.
a sugestão é adaptar o ritual à sua realidade, mas ao pensar em modificar as perguntas, que se faça com a mesma cautela de quem ajusta um instrumento de medição sensível, ciente de que pequenas mudanças podem alterar a qualidade do sinal que se coleta.
as perguntas sugeridas nos pulsos não são arbitrárias. pelo contrário, as palavras foram escolhidas e as frases montadas deliberadamente para oferecer dados mais confiáveis, variados e válidos.
para capturar sinais confiáveis sobre a saúde da operação, a qualidade da parceria.
ainda assim, é preciso ser cético com qualquer promessa de perfeição. nenhuma pergunta, por mais bem desenhada que seja, é uma salvação.
elas são apenas um ponto de partida intencionalmente menos falho. a intenção não é encontrar a 'verdade' ou eliminar a complexidade das relações humanas, mas sim reduzir o ruído o suficiente para que conversas mais honestas e úteis possam acontecer.
são uma tentativa de criar um acordo prático para navegarmos juntos, não um mapa para um território harmonioso. o tópico final, “minimizando riscos — não existe solução final” enfrenta a realidade.
sumário
para guiar a leitura, o texto percorre os seguintes pontos:
os perigos dos métodos tradicionais e a busca por um caminho mais cuidadoso.
um sistema leve de 'sinais' para sentir o pulso da organização, com focos em:
pulso de saúde operacional (a saúde da operação).
pulso de parceria (a saúde das relações).
pulso de prontidão e aprendizado (a adequação ao papel).
a tensão na interpretação: o problema é sistêmico ou individual?
conectando os sinais a um ecossistema de desenvolvimento, que inclui:
o fluxo de descobertas: uma alternativa às trilhas lineares, com esferas de impacto, papéis e selos.
as práticas de apoio distribuído para o desenvolvimento contínuo.
dos sinais à decisão: lidando com os momentos críticos de forma separada, com:
o caminho do reconhecimento: conectando impacto, remuneração e progressão.
o elefante na sala: três experimentos para o encerramento de uma parceria.
minimizando riscos — não existe solução final
leia também:
os perigos dos métodos tradicionais e a busca por um caminho mais cuidadoso e útil
antes de explorar alternativas, vale a pena aprofundar a nossa compreensão sobre por que as ferramentas mais comuns, mesmo quando bem-intencionadas, costumam falhar em seus propósitos fundamentais.
a mesma disciplina que nos leva a remover o que engana no processo de seleção — como currículos e entrevistas tradicionais — precisa ser aplicada ao nosso dia a dia. a busca por um caminho mais cuidadoso para o desenvolvimento não começa adicionando novos rituais complexos, mas removendo aqueles que já se mostraram mais prejudiciais do que úteis. a lógica é a mesma: para ter um sinal mais limpo, primeiro é preciso remover o ruído.
uma intervenção que promete ajudar, mas que na prática gera mais dano, é pior do que nenhuma intervenção.
a avaliação 360: o teatro do julgamento retrospectivo
a promessa do feedback 360 é a de uma visão holística. a realidade, no entanto, é a de um ritual repleto de falhas de design que o tornam mais um instrumento de julgamento do que de aprendizado.
a ilusão da objetividade: a premissa de que a soma de múltiplos vieses subjetivos resulta em uma verdade objetiva é uma premissa equivocada. a avaliação de uma pessoa diz mais sobre o modelo mental e os vieses de quem avalia do que sobre o avaliado.
o paradoxo do anonimato: o seu mecanismo de segurança é também uma de suas grandes vulnerabilidades. em um sistema que usa perguntas abertas e produz um "dossiê" final, o anonimato se desvirtua. ele se torna ou um convite à irrelevância, com feedbacks polidos por medo, ou um escudo para a hostilidade irresponsável. a ferramenta não foi desenhada para catalisar uma conversa honesta, mas para entregar um veredito, muitas vezes ambíguo.
o foco em "consertar" o indivíduo: o processo, por natureza, enquadra o desempenho como um atributo individual a ser corrigido. ele desvia a atenção das influências sistêmicas — processos, clareza de papéis, normas, rituais e crenças reforçadas — que são, na maioria das vezes, a fonte dos atritos e dos resultados insatisfatórios.
a autópsia tardia: um feedback sobre algo que ocorreu há meses pode ser inútil para o aprendizado. a informação chega tarde demais, o contexto se perdeu, e a memória distorceu os fatos. o ritual serve para julgar o passado, não para ajustar o curso do presente.
a arquitetura da pergunta (o ruído que entra): além da subjetividade de quem responde, a própria arquitetura das perguntas costuma ser falha. perguntas vagas ("como você avalia a 'proatividade' de fulano?"), que convidam a interpretações múltiplas, ou perguntas com viés de confirmação, geram dados que não são nem confiáveis, nem válidos. o resultado é um relatório que nos leva a agir sobre o ruído, e não sobre o sinal.
a medição de engajamento: a armadilha de um número só com métricas de sentimento
de forma semelhante, a busca por um "score" único para medir sentimentos como o engajamento nos leva a simplificações perigosas.
de forma semelhante, a busca por um "score de engajamento" nos leva a simplificações perigosas. aqui, o problema da arquitetura da pergunta, já presente no 360, revela-se igualmente crítico.
boa parte das pesquisas de clima ou engajamento falha porque pede para as pessoas avaliarem conceitos abstratos e distantes (ex: "tenho confiança na liderança sênior para guiar a organização para o futuro?"), em vez de convidá-las a relatar sua experiência concreta e diária (exemplos: “tive dúvidas sobre o que deveria fazer neste período?”, “consegui rapidamente o apoio de outras pessoas ou áreas sempre que precisei para avançar?”, "sinto que o time me apoia quando preciso?").
a primeira pergunta gera um dado ruidoso, um julgamento sobre algo que a pessoa não tem como avaliar de fato: baseado em percepção (não pede pra relatar a experiência própria da pessoa mas para avaliar competência de outra), vago (“liderança sênior”), especulativo (“para o futuro”) e não acionável (o que fazer com isso?).
a segunda gera um sinal, um relato sobre a realidade vivida.
nesses exemplos a lógica seria: não me pergunte se eu acho que o capitão sabe navegar. me pergunte se o barco está balançando, se tenho remos e se sei para qual direção remar. as respostas a essas perguntas me darão um sinal muito mais confiável sobre a qualidade da navegação do que a minha opinião sobre o capitão.
agir com base no ruído gerado por perguntas vagas e mal elaboradas é muito perigoso. leva a organização a gastar energia em "planos de ação" que tentam intervir em sobre padrões mal interpretados. quando as pessoas oferecem seu tempo e sua percepção e não veem nenhuma mudança tangível — ou pior, veem ações que não fazem sentido —, elas aprendem a lição mais importante: a de que sua voz não importa. o cinismo se torna a resposta racional a um teatro de participação, e a confiança no processo é corroída.
e outro grande é o que acontece depois da pesquisa. a energia investida em uma pesquisa anual e centralizada raramente se traduz em ação local. os resultados são agregados, apresentados à liderança e desconectados das equipes que poderiam, de fato, agir.
quando as pessoas oferecem seu tempo e sua percepção e não veem nenhuma mudança tangível, elas aprendem a lição mais importante: a de que sua voz não importa. o cinismo se torna a resposta racional a um teatro de participação.
um sistema leve de sinais
é para endereçar essas falhas de design acima — o foco no julgamento retrospectivo, a confusão de métricas e a paralisia da ação — que as propostas a seguir foram pensadas.
saímos do ciclo de "medir para julgar" e entramos na prática de "sentir para agir", de forma distribuída, contextualizada e contínua.
pulso de saúde operacional — ciclos quinzenais (5 min, individual e anônimo)
a intenção aqui é sentir o pulso da saúde da operação do time de forma rápida e frequente. este não é um processo para medir um sentimento vago de "engajamento", mas para capturar sinais vitais sobre as condições de trabalho que permitem ou impedem um fluxo saudável.
a proposta é usar cinco declarações que funcionam como um painel de controle, medindo desde a clareza até a capacidade de recuperação individual. para cada uma, a pessoa responde usando uma escala de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente).
declarações:
clareza: tive dúvidas sobre o que deveria fazer neste período. (escala 1-5)
autonomia e fluxo de trabalho: tive a autonomia e as condições necessárias para avançar no meu trabalho sem depender de permissões ou ser bloqueado por obstáculos desnecessários. (escala 1-5)
apoio interno (time): sinto que o time me apoia quando preciso. (escala 1-5)
apoio externo (organização): consegui rapidamente o apoio de outras pessoas ou áreas sempre que precisei para avançar. (escala 1-5)
dano individual (indicador de esgotamento): neste período, senti uma dificuldade persistente em me desligar mentalmente do trabalho, o que afetou minha capacidade de descanso e recuperação. (escala 1-5)
a conversa sobre os padrões
os dados coletados não são um fim em si mesmos. seu principal valor é iniciar uma conversa curta (30-45 min) e focada. o facilitador (qualquer membro do time) apresenta os padrões anônimos e guia a exploração com perguntas como:
"olhando para esses padrões, o que mais chama a nossa atenção? por quê?"
"em quais aspectos parecemos mais fortes como time neste momento?"
"quais áreas parecem precisar de mais atenção ou cuidado?"
"que pequeno experimento poderíamos tentar nas próximas semanas para fortalecer uma área que parece frágil ou para manter uma que já está forte?"
os três tipos de aprendizados possíveis
mesmo em um time que se desfaz em poucas semanas, o aprendizado gerado por este processo ajuda em três níveis:
aprendizado para o projeto atual (correção de curso): a capacidade de fazer ajustes durante o projeto.
aprendizado para as pessoas (ampliação de repertório): cada pessoa carrega a experiência para o próximo time, aprendendo sobre as condições que favorecem seu próprio bem-estar e desempenho.
aprendizado para a organização (melhoria do sistema): padrões que se repetem em vários projetos revelam falhas sistêmicas, alimentando a melhoria da forma como a organização estrutura seu trabalho.
pulso de parceria — ciclos mensais ou ao fim de um projeto (5 min, individual e anônimo)
o propósito aqui é sentir o pulso da experiência de colaboração no time de forma leve e cíclica, gerando insumos confidenciais tanto para a reflexão individual quanto para a melhoria do sistema. não se trata de um processo complicado e raro de avaliação 360º, mas de um pulso simples e frequente.
é crucial manter o anonimato total para quem responde, incluir a autoavaliação para gerar um momento de comparação privada e focar a análise sempre em padrões consistentes, não em dados isolados.
duas opções para a coleta dos sinais
opção 1 (preferencial)
quatro declarações que buscam a percepção da pessoa sobre sua própria experiência. o processo ocorre em um formulário simples, em dois passos:
primeiro, a pessoa responde sobre o nível de interação que teve: "qual foi seu nível de interação de trabalho com [nome da pessoa] neste projeto?" (opções: alto, médio, baixo, nenhum).
apenas para as pessoas com quem teve interação "alta" ou "média", as declarações de sinal aparecem, usando uma escala de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente).:
qualidade da colaboração: quando precisei de algo que dependia de [nome], consegui apoio rápido e eficaz.
confiança: eu sempre escolheria [nome] para trabalhar comigo em um próximo time.
respeito e influência: senti que minha opinião ou a do time foi ignorada por [nome] antes de uma decisão importante.
preferência de parceria: eu confio plenamente em [nome] para lidar com os problemas em sua área de responsabilidade.
opção 2 (alternativa)
uma abordagem mais simples, com dois campos de texto livre:
campo 1: “liste até 3 colegas com quem mais gostou de trabalhar junto.”
campo 2: “liste até 3 com quem teve mais dificuldade em trabalhar junto (opcional).”
o que fazer com estes sinais: um fluxo de via dupla
uma vez coletados, o valor destes sinais está na forma como eles são processados. o fluxo funciona em duas vias simultâneas para garantir que a reflexão gere movimento e não dependa de um único ponto de ação.
via sistêmica (para o grupo de “cuidado e parceria”): o conjunto de dados anônimos é enviado ao grupo de cuidado e parceria. a função deles é analisar os padrões gerais (ex: "em muitos times, a percepção de apoio rápido é baixa") para identificar e endereçar possíveis falhas nos processos ou na estrutura da organização.
adicionalmente, quando os sinais sobre uma pessoa específica revelarem um padrão consistente e extremo (seja de grande dificuldade ou de notável impacto positivo ao longo de vários ciclos), o grupo pode iniciar uma conversa particular.
a intenção dessa conversa não é de cobrança ou avaliação, mas de curiosidade e apoio: busca-se entender o contexto da pessoa, ajudá-la a interpretar os sinais e explorar em conjunto os melhores caminhos ou recursos para a situação, conectando-a, se necessário, às práticas de aprendizado distribuído.
via individual (para cada pessoa): ao mesmo tempo, cada pessoa recebe um relatório confidencial e pessoal com o percentil 10 (p10) e percentil 90 (p90) de como ela foi percebida pelo time em cada pergunta.
o propósito de receber seus próprios resultados não é gerar uma "nota", mas sim servir como um espelho para a auto-reflexão. se, ao olhar para estes sinais, você sentir o desejo de aprofundar uma relação de trabalho ou aprimorar uma prática, a ação não precisa depender do "grupo de cuidado". a partir dos sinais, a pessoa pode, de forma autônoma, iniciar conversas e experimentos para fortalecer suas parcerias, usando abordagens como as sugeridas no texto "desconstruindo o ritual 1:1".
pulso de prontidão e aprendizado — ciclos trimestrais
os dois pulsos anteriores focam na saúde das interações e nas condições de trabalho. mas, e se sentirmos a necessidade de um sinal mais direto sobre a adequação das capacidades e o ritmo de aprendizado para um determinado papel?
este terceiro pulso busca preencher essa lacuna, de uma forma que continua a evitar o julgamento de competências. ele pode ser rodado de forma menos frequente, talvez trimestralmente, e é desenhado em duas etapas distintas.
para cada declaração usamos uma escala de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente).
etapa 1: autoavaliação (respondida apenas uma vez)
esta parte foca na sua própria percepção sobre seu desenvolvimento e alinhamento de longo prazo. são reflexões mais profundas, feitas para guiar conversas sobre carreira e a natureza do seu papel.
você responde a estas declarações uma única vez por ciclo:
prontidão percebida: pensando nos desafios atuais e futuros do meu papel, eu me sinto confiante e preparado(a) para lidar com eles.
o que se mede aqui não é a competência "real", mas a autopercepção de prontidão da pessoa. isso revela seu nível de confiança e sua própria necessidade de apoio, um dado valioso e não ameaçador.
alinhamento do aprendizado: sinto que estou aprendendo e me aprimorando nas áreas que são mais importantes para o sucesso do time.
mede a percepção de sintonia entre o desenvolvimento individual e as necessidades do sistema. um sinal baixo aqui pode indicar que a pessoa, apesar de estar aprendendo, pode estar se desenvolvendo em uma direção que não contribui para os desafios atuais do time.
alinhamento de competência: tive oportunidades frequentes de fazer aquilo que sei fazer de melhor.
alinhamento de forças (energia): tive oportunidades frequentes de fazer o que me deixa mais energizado.
etapa 2: percepção sobre o impacto dos pares (repetida para cada colega)
nesta segunda parte, o formulário apresentará o nome de cada colega de time, e para cada um deles, você responderá à seguinte pergunta:
impacto observável: a atuação de [nome] no seu papel consistentemente tem acelerado nosso progresso e facilitado nosso trabalho em conjunto.
aqui, não se pede um julgamento sobre a habilidade de alguém, mas um relato do impacto observável de sua atuação no coletivo. é um dado sobre o efeito, não sobre a pessoa, o que o torna mais concreto e menos enviesado.
o que fazer com estes sinais?
diferente dos sinais de saúde operacional, que podem ser discutidos abertamente pelo time, os dados de prontidão são mais sensíveis e pessoais. o tratamento deles, portanto, segue um fluxo mais parecido com o dos sinais de parceria, focado na reflexão individual e no apoio direcionado.
a intenção é usar os sinais para identificar onde o apoio é mais necessário e, então, acionar as ferramentas do ecossistema de apoio para oferecer ajuda de forma humana e eficaz. ele serve para potencializar que o aprendizado individual e as necessidades do sistema caminhem juntos, não por meio de avaliação, mas por meio de cuidado e de um conjunto rico e variado de interações de desenvolvimento.
para a pessoa (auto-reflexão): o processo de reflexão acontece em dois tempos para ser mais eficaz. primeiro, ao finalizar o preenchimento, a própria ferramenta (seja um google forms ou outra) pode enviar à pessoa uma cópia imediata de suas respostas de autoavaliação. com estes dados já em mãos, ela tem um registro de sua autopercepção no momento.
em um segundo momento, ao final do ciclo, ela recebe a informação complementar: percentil 10 (p10) e percentil 90 (p90) de como o time percebeu seu impacto (a partir das respostas da etapa 2). o exercício de reflexão, então, é comparar sua percepção inicial com o reflexo que recebe do time, criando um convite poderoso à curiosidade: "o que nesta dinâmica eu não estou vendo?".
para o sistema (o "grupo de cuidado e parceria"): o grupo de cuidado recebe os dados de forma agregada e anônima. a primeira análise é sistêmica, buscando padrões: "existe um sentimento geral de despreparo em um determinado papel na organização?", "pessoas em papéis de coordenação sentem que seu aprendizado está desalinhado com as necessidades dos times?". esses padrões revelam falhas no sistema.
a conversa de apoio (quando um padrão individual persiste): se os sinais de uma pessoa específica indicarem uma lacuna grande e persistente entre prontidão, impacto e alinhamento, isso não aciona um "feedback", mas sim uma necessidade de cuidado.
a ideia não é agendar uma reunião de "acerto de contas" ou 1:1 com um chefe ou líder, mas sim ativar o ecossistema de apoio distribuído descrito no texto "desconstruindo o ritual 1:1".
a conversa que se segue não é sobre "consertar a pessoa", mas sobre investigar a lacuna e co-desenhar experimentos.
sistema de 'sinais' e 'fluxo de descobertas'
é neste ponto que o sistema de 'sinais' pode se conectar a um 'fluxo de descobertas' com práticas de apoio distribuído para formar um ecossistema de desenvolvimento.
a estrutura — com seus pulsos, papéis e selos — não é um fim em si mesma, mas um catalisador intencionalmente desenhado para um propósito: gerar conversas e ações mais eficazes.
pense neste ecossistema como um sistema operacional leve para o desenvolvimento: um conjunto de protocolos e rituais, desenhados não para serem a solução final, mas para criar as condições onde as soluções possam emergir através de interações mais ricas e bem informadas pelos sinais que o próprio sistema gera.
a estrutura não substitui a ação; ela a qualifica. ela é o catalisador que dá foco e propósito à ação. e é a ação, informada por estes sinais, que de fato nos ajuda a navegar a complexidade.
se os sinais são a nossa bússola, este ecossistema é o que nos ajuda na jornada.
1. o fluxo de descobertas: uma alternativa às trilhas lineares
em vez de usar modelos de progressão rígidos, o mapa oferece uma abordagem mais fluida, combinando três elementos interdependentes. ele é um artefato vivo, revisado periodicamente por um "grupo guardião do mapa", que zela pela sua coerência e relevância.
a. trilhas de especialidade
é o caminho profissional principal de uma pessoa (ex: engenharia de software, produto, design). as trilhas servem como a primeira camada de alinhamento com o mercado e são a base para a estrutura de faixas salariais.
b. esferas de impacto
descrevem o alcance da contribuição e o nível de autonomia esperado. a progressão entre elas é um reconhecimento puxado pela própria pessoa, baseado em um portfólio de evidências de seu impacto.
aprendiz: foco em aprender e aplicar com orientação. autonomia guiada para lidar com tarefas claras e bem definidas. impacto local (tarefas individuais).
realizador: foco em aplicar de forma autônoma e propor soluções. define o "como" para lidar com problemas conhecidos. impacto no time ou produto/serviço.
mentor: foco em lidar com ambiguidade e multiplicar conhecimento. define o "o quê" e o "como" em escopos amplos para lidar com problemas ambíguos. impacto multi-time ou de área.
estrategista: foco em lidar com desafios sistêmicos e criar novas capacidades. define a direção estratégica para lidar com problemas sistêmicos. impacto estratégico na organização.
como a progressão acontece?
o caminho "puxado" (auto-iniciado)
este é o fluxo padrão, iniciado pela própria pessoa.
auto-reflexão e intenção: a pessoa sente que sua contribuição e autonomia já ultrapassaram sua esfera atual de forma consistente. ela decide iniciar o processo.
construção do portfólio de impacto: com o apoio do "grupo de cuidado e parceria" ou de mentores, a pessoa compila um portfólio com evidências concretas que demonstram sua atuação na esfera desejada. as evidências podem incluir artefatos de trabalho, narrativas de projetos complexos, e o histórico de sinais dos pulsos.
convocação do painel e deliberação: a pessoa solicita a formação de um "painel de deliberação". o painel revisa o portfólio e tem uma conversa de validação com a pessoa, focada em explorar as evidências.
o reconhecimento: o painel delibera e, por consentimento, formaliza o reconhecimento da pessoa na nova esfera de impacto.
o caminho "proposto" (iniciado por outros)
este fluxo serve para encorajar pessoas que talvez não reconheçam o próprio crescimento (ex: por síndrome do impostor).
o reconhecimento por pares: um ou mais colegas observam um padrão de impacto notável e enviam uma "proposta de reflexão" confidencial ao “grupo de cuidado e parceria”.
o convite à reflexão: o grupo de cuidado aborda a pessoa de forma privada e cuidadosa. a conversa não é "você foi indicado para promoção", mas sim: "recebemos um reconhecimento muito positivo sobre seu impacto. isso nos convidou a refletir se a sua esfera atual ainda representa sua contribuição. isso ressoa com você? se e quando fizer sentido, estamos aqui para te apoiar a explorar essa ideia."
a agência da pessoa: a pessoa tem total autonomia para aceitar, adiar ("agradeço, mas não me sinto pronto(a) agora") ou recusar o convite. caso aceite, o processo segue para o passo 2 do caminho "puxado": a construção do portfólio.
c. papéis contextuais
papéis são sobre responsabilidade, não sobre identidade. eles respondem à pergunta: "pelo o que você é responsável neste momento para ajudar o time a avançar?". distinguimos dois tipos para dar clareza ao nosso foco:
papéis de função (persistentes): representam uma responsabilidade contínua de cuidado com o sistema, alinhada a uma trilha. a pessoa que energiza o papel pode mudar, mas a responsabilidade permanece. exemplos: "desenvolvedor(a) do time de checkout", "guardião(ã) do design system".
papéis de projeto (temporários): representam uma responsabilidade focada em uma iniciativa com início, meio e fim (ex: "líder técnico da iniciativa x", "revisor de segurança para o lançamento y"). eles nascem e morrem com a missão.
como um papel nasce ou é formalizado?
um papel pode surgir de duas formas, sempre de maneira distribuída e contextual:
propondo um novo papel: qualquer pessoa ou time que perceba uma responsabilidade importante não sendo cuidada pode fazer uma proposta. o processo é um "rascunho de papel" simples, respondendo a três perguntas: 1) nome do papel, 2) propósito (por que ele existe?), e 3) responsabilidades. a proposta é então validada por consentimento pelo time que será mais impactado por ela.
formalizando uma prática existente: muitas vezes, um papel já existe de forma tácita. o processo para torná-lo explícito é uma conversa de reconhecimento dentro do time, talvez em uma retrospectiva. a pergunta é simples: "percebemos que [nome] está consistentemente cuidando de [responsabilidade]. isso tem sido valioso para nós. faz sentido formalizarmos isso como o 'papel x' para dar clareza a todos?". a decisão por consentimento transforma a formalização em um ato de apreciação e clareza coletiva.
como os papéis são energizados?
uma pessoa energiza um papel por voluntariado ou convite dos pares.
é possível energizar um papel para aprender e desenvolver as competências necessárias, usando a responsabilidade como um campo de prática para, eventualmente, validar um selo.
uma pessoa normalmente tem um ou mais papéis de função como sua "base" e, a partir dela, assume papéis de projeto conforme a necessidade do trabalho.
selos como pré-requisito: uma distinção de risco
a relação entre papéis e selos depende da criticidade da responsabilidade:
para a maioria dos papéis abertos à experimentação, um selo é desejável, mas não obrigatório. energizar o papel é o campo de prática para desenvolver a capacidade e, eventualmente, validar o selo correspondente.
para papéis de alta criticidade, o time pode definir que um ou mais selos são pré-requisitos mandatórios, garantindo que responsabilidades de alto impacto sejam energizadas por pessoas com capacidade já comprovada.
d. selos de prática
selos são sobre capacidade, não sobre responsabilidade. eles são o reconhecimento de capacidades específicas e comprovadas para produzir desfechos valiosos. eles respondem à pergunta: "o que você já demonstrou que sabe fazer?". um papel pode exigir certos selos como pré-requisito.
como novos selos são criados?
a proposta de um novo selo é aberta a todos. qualquer pessoa pode propor um novo selo, justificando seu valor para a organização. um "grupo guardião do mapa" atua como curador, garantindo clareza e alinhamento estratégico antes de incluir um novo selo no mapa.
como os selos são validados?
a validação do reconhecimento é feita por um painel de pares que analisa um portfólio de evidências (artefatos para selos técnicos, narrativas de desfecho para selos de prática relacional).
a natureza da evidência depende do selo:
selos técnicos (ex: "arquitetura de microsserviços") são validados por um portfólio de artefatos (códigos, designs, documentos).
selos de prática relacional (ex: "mediação de conflitos") são validados por narrativas de desfecho, corroboradas por atestações confidenciais de impacto de outros envolvidos.
a validação de cada elemento é um processo distinto
para manter o sistema leve e focado, o reconhecimento de uma esfera, a validação de um selo e a formalização de um papel são processos separados. eles se informam mutuamente, mas a deliberação de cada um é focada em seu propósito específico.
2. as práticas de apoio distribuído
se o mapa nos dá o terreno, as práticas de apoio são a forma como o navegamos no dia a dia. são as conversas e trocas que nos ajudam a aprender e a nos desenvolver de forma contínua, como exploro em detalhes no texto "desconstruindo o ritual 1:
a tensão: o problema é sistêmico ou individual?
ao olhar para os dados de qualquer pulso, a tentação é buscar culpados. para que este processo seja útil, precisamos inverter essa lógica com uma disciplina de investigação.
a regra de ouro é: a primeira hipótese deve ser necessariamente a de que o problema é sistêmico.
esta regra não é um exercício de otimismo, mas um mecanismo de segurança deliberado. ela funciona como um freio contra a nossa tendência natural de buscar culpados e usar pessoas como bodes expiatórios para falhas da organização. é uma disciplina que nos força a investigar as condições do ambiente antes de julgar o indivíduo, reconhecendo que, muitas vezes, os resultados insatisfatórios são uma resposta racional a um sistema disfuncional.
antes de perguntar "quem não está performando?", a conversa deve começar com declarações sobre o sistema:
clareza: "a forma como definimos o trabalho e as prioridades é clara o suficiente para qualquer um ter sucesso?"
ferramentas e processos: "nossos processos e ferramentas estão facilitando ou dificultando a colaboração?"
ambiente: "nosso ambiente de trabalho oferece a segurança e o apoio necessários para que as pessoas peçam ajuda?"
você pode explorar muitas outras perguntas sobre diferentes partes do sistema organizacional com o mapa tentaculus.
somente após o time esgotar as influências sistêmicas é que o foco deveria se voltar, com cuidado, para o contexto individual. se o sistema é considerado funcional para a maioria, mas um padrão de atrito persiste em torno de uma pessoa, a pergunta muda para: "o que está acontecendo nesta situação específica? é uma lacuna de habilidade? de conhecimento? de apoio?".
é neste ponto, quando a questão se torna mais pessoal e contextual, que as práticas de apoio distribuído se tornam essenciais. para explorar um cardápio de experimentos sobre como ter essas conversas de apoio de forma mais humana e eficaz, o texto "desconstruindo o ritual 1:1" oferece um guia prático.
dos sinais à decisão: lidando com os momentos críticos
o sistema de sinais é uma ferramenta de aprendizado. no entanto, ele inevitavelmente ilumina situações que exigem uma decisão. para manter a integridade do sistema, é crucial que os processos de decisão sejam separados, ainda que informados pelos sinais.
1. o caminho do reconhecimento: remuneração e progressão
diferente dos modelos tradicionais que buscam "identificar potencial", esta abordagem foca em reconhecer o impacto consistente e comprovado.
as regras do mapa: conectando impacto e valor
o sistema de remuneração busca ser transparente, conectando os três elementos do "fluxo de descobertas" a diferentes formas de reconhecimento:
esferas de impacto → base salarial: cada esfera corresponde a uma faixa salarial transparente e alinhada ao mercado. ser reconhecido em uma nova esfera de impacto habilita a pessoa a acessar a faixa salarial correspondente.
papéis contextuais → adicionais por responsabilidade: energizar um papel de alta criticidade ou responsabilidade pode conceder um adicional temporário, que dura enquanto a pessoa estiver naquele papel.
selos de prática → bônus e multiplicadores estratégicos: a organização pode designar certos selos como "estratégicos" para o momento atual do negócio. possuir um selo estratégico ativo pode conceder um multiplicador na remuneração ou um bônus. para garantir que as habilidades se mantenham afiadas, selos têm um prazo de validade (ex: 6, 12 ou 18 meses) e precisam ser revalidados com novas evidências.
o processo de reconhecimento: da evidência à deliberação
com as regras claras, o processo para navegar neste mapa é focado no desenvolvimento e na validação por pares.
1. do sinal à amplificação: o que fazer com os padrões de excelência
o processo não começa com uma avaliação formal, mas com a identificação de um padrão consistente e notável de impacto positivo nos sinais. um padrão como este não aciona uma consequência automática, mas sim um processo humano de curiosidade e investigação pelo "grupo de cuidado". a pergunta norteadora é: "este padrão de excelência é um sinal a ser recompensado, um conhecimento a ser aprendido, ou uma responsabilidade a ser convidada?".
a conversa que se segue pode explorar três caminhos possíveis:
caminho 1: o convite à reflexão sobre a próxima esfera de impacto. se o padrão sugere que a pessoa já atua consistentemente em um nível de complexidade e autonomia mais elevado, o gatilho aciona um convite. o grupo de cuidado a convida para, se fizer sentido para ela, iniciar um processo de construção de seu "portfólio de impacto" para ser reconhecida formalmente em uma nova esfera. a recompensa aqui é a progressão, com suas consequências na remuneração base.
caminho 2: a investigação apreciativa para aprendizado organizacional. se o padrão revela uma maestria em uma prática específica (ex: facilitar reuniões, dar feedback útil), o "prêmio" pode ser o reconhecimento como uma fonte de sabedoria. a conversa se torna um convite para que a pessoa ajude a organização a aprender, talvez documentando sua prática, oferecendo uma mentoria ou facilitando um workshop. a recompensa é o reconhecimento como um(a) mestre(a) e a oportunidade de multiplicar seu impacto.
caminho 3: o convite para papéis de zelo do sistema. se a pessoa demonstra um cuidado e uma habilidade excepcionais em alguma dimensão do sistema (ex: mediação de conflitos, mentoria), o reconhecimento pode vir na forma de um convite para assumir um papel de maior responsabilidade, como se tornar um(a) "guardião(ã)" de um selo ou um membro do "painel de deliberação". a recompensa é a confiança e a responsabilidade de zelar pela saúde do próprio sistema.
2. o processo de deliberação e validação
a partir do gatilho, a conversa de desenvolvimento se aprofunda. a pessoa, com o apoio do "grupo de cuidado", pode explorar a possibilidade de ser reconhecida em uma nova esfera. o processo se baseia em evidências, não em opiniões:
a pessoa constrói um portfólio de impacto que demonstra sua atuação no nível de impacto desejado.
este portfólio, junto com o histórico de sinais, é então levado a um processo de deliberação por um "painel de pares".
3. o teste de convicção do painel
ao final da deliberação, para garantir o alinhamento e a responsabilidade da decisão, o painel pode usar um conjunto de perguntas de alto risco. elas não avaliam a pessoa, mas medem a convicção dos próprios decisores:
dado o que sabemos e vimos, nós reconheceríamos esta pessoa nesta esfera de impacto hoje? (sim ou não)
se fosse nosso dinheiro, nós recompensaríamos esta pessoa com a remuneração e bônus possível mais altos em sua nova faixa? (escala 1-5)
um "não" ou uma nota baixa aqui é um sinal para o próprio painel de que a decisão não está madura, e que mais informações ou tempo de observação são necessários.
mecanismos de confiança: como o sistema se protege de distorções
para que um sistema de desenvolvimento seja minimamente confiável, ele precisa ter travas de segurança intencionais contra as distorções do dia a dia. o cenário é comum e doloroso: a promoção que acontece não por impacto consistente, mas porque a pessoa domina o jargão da área, ou, de forma ainda mais corrosiva, a contraproposta reativa, que surge apenas quando alguém recebe uma oferta para sair. esse tipo de movimento, que passa por cima de qualquer processo, escancara uma falta de cuidado anterior e gera um cinismo que invalida o esforço de quem segue o caminho proposto.
a intenção, então, é construir um sistema com travas de segurança, que mova a dinâmica de uma confiança cega para uma confiança verificável.
da opinião à evidência (o portfólio de impacto): aqui, a avaliação sai da opinião subjetiva de um gestor e vai para a análise de um portfólio com artefatos e narrativas. isso força a conversa a sair do campo abstrato da "habilidade" para o concreto do "resultado observável". a pergunta-chave do painel não é "você se sente pronto?", mas sim "nos mostre as evidências de que seu impacto já é o de um mentor".
da decisão monocrática à deliberação por pares qualificados: a decisão não é de um único líder, que talvez não entenda o ofício (craft), mas de um painel com pares que podem avaliar a substância do trabalho. quando não há um par direto (ex: o único designer da empresa), o painel inclui pessoas de trilhas adjacentes (como produto e engenharia) que podem avaliar o impacto observável daquele ofício no trabalho do time.
da promoção reativa ao reconhecimento intencional: o sistema cria um atrito deliberado contra o uso da promoção como "algema de ouro". o processo de reconhecimento é mais lento e focado em uma contribuição consistente já demonstrada, não em uma promessa de contribuição futura, forçando a organização a lidar com a retenção de outras formas, que não a de inflacionar um cargo no susto.
do consenso superficial à convicção com "pele em jogo": como freio final, o painel é forçado a confrontar a seriedade da decisão respondendo a uma pergunta de alto risco: "se o dinheiro fosse nosso, nós faríamos esta aposta?". uma hesitação aqui não julga a pessoa, mas sinaliza ao próprio painel que a decisão não está madura, exigindo mais evidências ou tempo.
2. o elefante na sala: três experimentos para o encerramento de parceria
mesmo com um sistema focado em apoio, haverá momentos em que uma parceria de trabalho se torna insustentável.
é crucial reconhecer que nenhum sistema, por mais humano que se pretenda, pode eliminar a dor ou a dificuldade desses momentos. a busca não é por um processo 'justo' ou 'indolor' de demissão — uma ambição utópica que ignora a realidade do conflito humano.
o objetivo é mais modesto e pragmático: encontrar um acordo prático para lidar com o inevitável de uma forma menos destrutiva, mais responsável e que preserve a dignidade de todos os envolvidos, tanto de quem fica quanto de quem sai. misturar o processo de desenvolvimento com o de demissão corrompe a confiança. por isso, é necessário ter caminhos separados e explícitos para lidar com essa situação
abaixo, exploramos três experimentos. os dois primeiros, por envolverem um grupo de deliberação formal, podem se beneficiar de uma ferramenta que chamamos de "teste de convicção", detalhada a seguir.
uma ferramenta para deliberação formal: o teste de convicção
para os modelos que dependem de um grupo de decisão (um "grupo de relações contratuais" ou um "painel de pares"), o teste de convicção serve como um ritual final de verificação. após toda a deliberação, mas antes da decisão final, o grupo responde a um conjunto de perguntas de alto risco que medem a sua própria convicção. o objetivo não é avaliar a pessoa, mas sim a certeza dos próprios decisores.
as perguntas variam conforme o contexto:
para decisões de reconhecimento:
"dado o que sabemos, nós promoveríamos esta pessoa para este nível de impacto hoje? (sim/não)"para decisões de encerramento:
"esta pessoa tem um problema de desempenho que, após todas as tentativas de apoio, acreditamos que não será resolvido? (sim/não)"e"se esta pessoa saísse e se candidatasse novamente em seis meses, nós a recontrataríamos para a companhia? (1-5)"
um "não" ou uma nota que contradiga a direção da decisão deve forçar o grupo a pausar e reavaliar, garantindo que o processo seja o mais responsável possível.
1. o experimento com regras explícitas (o caminho da "justiça" algorítmica)
este modelo busca criar um sistema "objetivo" e previsível. é o caminho que mais se assemelha aos sistemas tradicionais, mas com salvaguardas.
como funcionaria: o processo seria desenhado em etapas progressivas, acordadas previamente por toda a organização:
o acordo prévio: antes de tudo, a organização discute e define em conjunto os parâmetros para transparência como primeira salvaguarda.:
alertas que funcionam em conjunto:
alerta de ‘conflito’ [p10 < 2) E (p90 - p10 > 3)]: isso indica se há um grupo de pessoas muito insatisfeitas (ex: dando nota 1) e se a diferença entre os mais satisfeitos e os mais insatisfeitos é gigantesca.
alerta de ‘apatia’ [p90 < 4]: identifica quando não há praticamente ninguém satisfeito.
número de ciclos de alerta
consequências exatas de cada etapa.
o sinal de alerta (1ª a X ocorrências): quando os sinais de uma pessoa ficam abaixo do limiar definido pela primeira vez, isso aciona um convite mandatório para uma conversa de apoio com o "grupo de cuidado e parceria". o foco desta conversa não é punitivo, mas investigativo: entender o contexto, os desafios e oferecer recursos.
o padrão persistente (múltiplas ocorrências): se, mesmo após o processo de apoio, o padrão se repetir por um número pré-definido de vezes consecutivas (ex: 3 ou 4 ciclos), o sistema aciona o próximo nível.
a proposta formal (o gatilho de decisão humana): aqui, o sistema gera uma proposta automática de encerramento de parceria. esta proposta não é a demissão em si. ela é um documento formal enviado a um grupo específico e de alta confiança (ex: um "grupo de relações contratuais"), que tem a responsabilidade final de analisar o caso.
riscos: este modelo, apesar de sua aparente clareza, introduz distorções. o risco principal é a corrupção do feedback. ao atrelar notas a emprego, a honestidade pode ser comprometida e a ferramenta de aprendizado se transforma em um jogo político. ele pode criar uma falsa objetividade que ignora o contexto e uma cultura de medo e conformidade, onde o foco se desloca da colaboração para a "gestão da própria nota".
minimizando os riscos: a principal forma de minimizar o risco é não usar este sistema como a fonte da verdade. o gatilho numérico deve servir apenas para iniciar um processo de deliberação humana qualificada, onde o contexto é resgatado e a decisão final ainda cabe às pessoas, não à regra.
2. o painel de pares (o caminho da deliberação distribuída)
este modelo parte do princípio de que a decisão mais justa não vem de uma regra, mas de um processo de deliberação bem estruturado, por pessoas que representam diferentes facetas do sistema.
como funcionaria: a força do painel reside na diversidade de perspectivas. uma composição típica seria:
membros do "grupo de cuidado e parceria" (os guardiões do contexto): 1 ou 2 pessoas que trazem o histórico dos dados, das tentativas de apoio e o contexto organizacional, garantindo que a decisão não se baseie em um evento isolado.
pares indicados pela própria pessoa (os advogados da perspectiva): 1 ou 2 colegas escolhidos pela pessoa em questão. seu papel é favorecer que a perspectiva, os desafios e o contexto da pessoa sejam compreendidos, trazendo a dimensão humana e empática para a deliberação.
membros neutros da comunidade (os guardiões do processo): 1 ou 2 pessoas respeitadas na organização, de outras áreas, que não têm uma relação de trabalho direta com a pessoa. sua função é zelar pela isenção e justiça do processo, fazendo as perguntas difíceis e atuando como uma "consciência externa" do painel. este painel, uma vez formado, revisa as informações, ouve as partes e chega a uma decisão por meio de um método deliberativo pré-acordado.
riscos: é um processo mais lento, imprevisível e pode ser emocionalmente mais desgastante. requer habilidades de facilitação e uma cultura que suporte conversas difíceis. pode ser suscetível a políticas internas se a composição do painel não for bem pensada.
minimizando os riscos: a presença de um facilitador neutro (idealmente externo) é crucial para garantir a segurança e a isenção. as regras de deliberação (ex: consentimento) e a transparência sobre como o processo funciona, mesmo que o conteúdo seja confidencial, ajudam a construir confiança.
3. a dissolução pelo time (o caminho da responsabilidade radical)
este é o modelo mais sistêmico, colocando a responsabilidade diretamente na equipe que sente o impacto.
como funcionaria: em times estáveis, um membro pode iniciar um processo formal para discutir a viabilidade de uma parceria que está prejudicando o coletivo. em sessões facilitadas, o time foca no impacto observável das dinâmicas de trabalho, não em acusações pessoais. a deliberação é sobre se "nós, como time, conseguimos continuar a trabalhar de forma eficaz e saudável com esta composição". o resultado pode ser uma renegociação de papéis, a saída voluntária de um membro para outro time ou, em último caso, a decisão coletiva de que a parceria com aquela pessoa na organização se tornou insustentável.
riscos: é o caminho que exige maior confiança, abertura e segurança psicológica. o risco de se tornar um "tribunal" ou de usar uma pessoa como bode expiatório para problemas sistêmicos é alto e pode ser um processo traumático se não for conduzido com extremo cuidado.
minimizando os riscos: a presença de um facilitador neutro e experiente é essencial. o processo deve ser lento, com múltiplas sessões e com "válvulas de escape" claras, como o acesso a conselheiros ou mediação individual. o foco deve ser mantido nos padrões de interação e no impacto no trabalho, não em traços de personalidade.
nota: como este experimento 3 é radicalmente distribuído e a deliberação acontece no próprio time, o 'teste de convicção' formal não se aplica da mesma maneira, pois a própria deliberação coletiva já é o teste.
minimizando riscos — não existe solução final
ao chegar ao fim desta exploração, sinto que o mais importante é reconhecer a fragilidade de qualquer método. a confiança que deposito nesta abordagem não vem de uma crença em sua perfeição, mas de sua intenção de ser um sistema com freios e contrapesos.
o valor desta proposta começa, de fato, naquilo que ela se propõe a desmontar — as práticas de avaliação que, com frequência, geram mais medo do que aprendizado. mas o trabalho não termina aí. sobre essa base mais limpa, a intenção é erguer uma estrutura mínima, um ambiente cujas regras e rituais ajudem a moldar interações mais seguras e produtivas.
essa estrutura se apoia em declarações e perguntas intencionais. o valor delas não reside nelas isoladamente, mas em sua capacidade de servirem como um ponto de partida deliberado para conversas de maior qualidade. perguntas pobres geram conversas pobres. a intenção aqui é usar perguntas bem desenhadas para capturar sinais mais confiáveis sobre nossa experiência e, a partir deles, catalisar diálogos que nos ajudem a navegar os desafios práticos do trabalho em conjunto.
é a partir dessa filosofia que os mecanismos a seguir foram desenhados:
trocar a opinião subjetiva pela evidência do impacto. em vez de um gestor decidindo uma promoção com base em sua percepção, o sistema exige um portfólio de impacto validado por pares qualificados. isso combate a promoção baseada em afinidade ou em uma boa narrativa pessoal.
substituir um grande evento frágil por pequenos sinais contínuos. em vez de uma "autópsia" anual, que chega tarde demais, os pulsos quinzenais e mensais permitem que o time corrija o curso enquanto a jornada acontece, tornando o aprendizado uma prática contínua e não um julgamento retrospectivo.
inverter o foco do indivíduo para o sistema. a regra de ouro — "a primeira hipótese deve ser de que o problema é sistêmico" — força uma investigação sobre clareza, processos e ambiente antes de se voltar para o comportamento individual. isso reduz o risco de usar pessoas como bodes expiatórios para falhas da organização.
separar desenvolvimento de decisões de alto risco. ao criar processos distintos para reconhecimento e para encerramento de parcerias, o sistema busca proteger a segurança psicológica necessária para o aprendizado. o feedback deixa de ser uma arma e pode se tornar uma ferramenta de cuidado.
colocar "pele em jogo" no processo de decisão. o "teste de convicção" força os decisores a confrontarem as consequências de suas escolhas. é fácil concordar com uma promoção ou demissão em tese; é muito mais difícil quando se é forçado a responder "se fosse meu dinheiro, eu faria essa aposta?".
nenhum desses mecanismos, contudo, é uma garantia. são apenas catalisadores. a estrutura não substitui a ação humana; ela a qualifica. a sua utilidade emerge da interação entre um desenho cuidadoso e a disciplina das pessoas em participar pdo processo, usando-o não para encontrar respostas fáceis, mas para se fazerem perguntas mais honestas.
a força desse sistema não está em uma única regra, mas na interação entre esses mecanismos. eles criam um processo intencionalmente mais rigoroso, que favorece a paciência e a consistência, em vez da percepção momentânea.
contudo, seria um erro enxergar esta estrutura como uma solução final.
ela é, na melhor das hipóteses, um conjunto de experimentos contínuos.
sua força não reside em uma suposta perfeição, mas em seu reconhecimento explícito da imperfeição humana e da complexidade sistêmica.
é uma aposta de que, ao criar rituais que nos forçam a pausar, a olhar para as evidências e a confrontar a seriedade de nossas decisões, podemos navegar nossos conflitos inevitáveis com um pouco mais de cuidado e um pouco menos de dano. a estrutura não substitui a ação humana; ela apenas tenta qualificá-la.





