a armadilha da eficiência com i.a.
como a busca por produtividade com i.a. leva um time a priorizar a velocidade da resposta em vez da qualidade da pergunta.
uma narrativa que ganha força em times de produto é a esperança de que a inteligência artificial será uma força libertadora, o assistente que finalmente dará tempo para o trabalho que importa: a estratégia, a descoberta, a reflexão profunda. a promessa é que, ao automatizar o trabalho repetitivo, a i.a. vai nos resgatar da esteira de produção do delivery.
é uma imagem poderosa, mas ao mesmo tempo frágil. a minha suspeita é que ela se apoia em um diagnóstico equivocado. a falta de tempo para pensar raramente é uma questão de ausência de ferramentas. ela normalmente é sintoma de um sistema — cultura, processos e incentivos que priorizam a velocidade da resposta em detrimento da qualidade da pergunta.
para entender o que pode acontecer, talvez seja útil olhar para a i.a. de duas formas distintas: como assistente e como substituta.
em seu papel de assistente, a i.a. aumenta a nossa eficiência. ela nos ajuda a escrever mais rápido, a analisar dados com mais agilidade, a refinar artefatos. aqui, corremos o risco de cair em uma armadilha antiga, o paradoxo de jevons. no século 19, o economista william jevons notou que motores a vapor mais eficientes não diminuíram o consumo de carvão, mas o aumentaram. a eficiência tornou o recurso mais acessível, o que expandiu seu uso e impulsionou ainda mais a demanda.
oliver burkeman compartilha um exemplo clássico, “se você se torna mais rápido para responder e-mails, acaba respondendo a mais pessoas, e mais depressa. então, elas te respondem de volta, e você precisa responder a essas respostas. quando se dá conta, está gastando mais da sua vida com e-mail”.
ele nomeia isso como a "armadilha da eficiência". um fenômeno em que o aumento da eficiência no trabalho ou em tarefas não se traduz em mais tempo livre, mas, ao contrário, em um volume maior de trabalho.
com a ia, ferramentas que automatizam tarefas como fazer anotações podem levar a cenários onde profissionais, como médicos, acabam atendendo mais pacientes em vez de terem mais tempo pessoal; ou onde escritores e programadores passam mais tempo editando e corrigindo códigos em vez de se dedicarem ao trabalho criativo que apreciam.
a analogia com nosso trabalho parece direta. quando a i.a. torna a execução de tarefas mais eficiente, a reação instintiva do sistema não é pausar, mas acelerar. a eficiência gera mais demanda por entrega, não mais folga. colocar automação em um processo que já valoriza a quantidade sobre a qualidade é como tentar apagar um incêndio com gasolina.
mas a i.a. também pode vir a atuar de outra forma: como substituta. ela pode eliminar por completo certas atividades do nosso dia a dia. nesse cenário, o paradoxo não se aplica da mesma forma. o trabalho não fica mais eficiente, ele simplesmente desaparece de nossas mãos.
isso cria um vácuo. a questão, então, muda. não é mais sobre como lidar com a aceleração, mas sobre o que vai ocupar o espaço deixado para trás. se o sistema não for redesenhado intencionalmente, a tendência é que esse vácuo seja preenchido por novas formas de trabalho performático, novas burocracias para gerenciar a própria automação.
seja qual for o cenário — o da aceleração ou o do vácuo —, o caminho para lidar com eles me parece menos tecnológico e mais intencional.
ele se parece mais com um fluxo de perguntas do que com uma única solução:
primeiro, começar pela subtração. a pergunta inicial não deveria ser sobre a i.a., mas sobre o próprio trabalho. "qual trabalho inútil, qual burocracia performática, podemos eliminar por completo?". este é um filtro fundamental. antes de otimizar a execução, questionamos a existência da tarefa. o que não passa por esse filtro deve ser descartado, não automatizado.
depois, fazer a alocação intencional. com o trabalho que realmente importa em mãos, a pergunta muda. é aqui que mapeamos os processos e nos questionamos: "disto que sobrou, o que a i.a. não é capaz de fazer hoje?". essa pergunta define as fronteiras, ilumina onde a contribuição humana é insubstituível e nos mostra onde usar a i.a. ao máximo para assistir ou substituir o resto. ela nos dá um mapa para a colaboração.
em seguida, pensar em sistemas. sabendo o que foi eliminado e o que foi alocado para a i.a., podemos olhar para o todo. a ideia aqui é enxergar a organização como um ecossistema. introduzir um elemento novo e poderoso como a i.a. é como introduzir uma nova espécie em uma floresta: os efeitos se espalham em cascata, afetando o solo, as outras plantas e os rios de formas inesperadas. com essa lente, a pergunta se torna: "como nosso ecossistema de trabalho (nossos papéis, nossa cultura, nossos incentivos) precisa evoluir para interagir com essa nova espécie de forma ponderada?". sem uma coevolução, o sistema poderá usar o tempo liberado para reforçar seus padrões antigos ou levar a padrões indesejados.
e por fim, buscar acordos práticos. a tensão entre o tático e o estratégico é contínua. para proteger o espaço recém-desenhado para o trabalho humano e reflexivo, são necessários pactos explícitos com a liderança e com o time. não é uma solução mágica, mas um arranjo funcional para dar sustentação à mudança.
a i.a. é um amplificador poderoso. ela vai amplificar nossa capacidade de produção, mas também os nossos vícios culturais, seja a nossa pressa ou a nossa tendência de preencher o silêncio com ruído. se não redesenharmos o sistema onde ela opera, ela apenas nos tornará mais eficientes em correr na direção errada.
a tarefa importante será cultivar a intencionalidade para decidir o que vale a pena ser feito com o tempo que ela pode, ou não, nos oferecer.
conheça um processo de produto que valoriza espaços e atividades intencionais: ops.timeproduto.com.br, baseado no artigo abaixo e outros experimentos.