teatro ágil: quando a estrutura se torna um fóssil
o equilíbrio entre uma burocracia messiânica e a tirania do poder invisível
li recentemente um texto interessante e provocador de john cutler, um autor que admiro pela vasta experiência e pela forma como articula as complexidades do nosso ofício. o artigo, intitulado "the gradual fall of stories and epics", e me peguei refletindo. no artigo, cutler descreve com uma precisão cirúrgica o sentimento de exaustão que muitas equipes sentem com o "teatro ágil".
como ele mesmo apontou, gastamos uma energia enorme debatendo o que é um "épico", quando poderíamos usar essa mesma energia para entender o impacto real do nosso trabalho.
o texto dele é mais do que uma análise; é um desabafo passional que ecoa a frustração de muitos de nós. ele fala sobre como as equipes mais experientes estão, naturalmente, abandonando as formalidades. e eu concordo com o diagnóstico. a dor é real, e a crítica dele à burocracia que se tornou um obstáculo, em vez de um auxílio, é não apenas válida, mas necessária.
no entanto, uma leitura apressada da provocação de cutler no texto pode levar a uma conclusão equivocada.
a ideia de que equipes maduras, depois de "internalizarem as lições", podem "abandonar as formalidades" e confiar na sua capacidade natural de se organizar. podem dar a entender de que a solução seria simplesmente abandonar toda e qualquer estrutura.
pois, como ele disse, "humanos quebram as coisas naturalmente e não precisam de dispositivos para isso".
porém, isso me remeteu a um ensaio clássico de jo freeman: "a tirania da ausência de estrutura". o que freeman argumenta, e que a experiência parece confirmar, é que não existe um grupo "sem estrutura". a escolha nunca é entre ter uma estrutura ou não, mas sim entre ter uma estrutura formal e explícita ou uma informal e implícita.
e é aqui que a ideia de "ausência de estrutura" se torna um risco. ela pode virar uma "cortina de fumaça", como diz freeman, para que os fortes ou sortudos estabeleçam uma hegemonia inquestionável.
na ausência de regras claras, o poder não desaparece; ele apenas se esconde. as decisões passam a ser tomadas em "redes de amizade", em conversas informais onde quem não tem tempo para cultivar essas relações — ou simplesmente não "se encaixa" no grupo dominante — fica de fora.
o poder se torna caprichoso e a responsabilidade, impossível de ser cobrada. pior ainda, uma estrutura que não é explícita se torna quase impossível de evoluir. como se pode mudar uma regra que não está escrita em lugar nenhum? os detentores do poder informal raramente têm incentivo para alterar um sistema que os beneficia, e não há um mecanismo claro para que o grupo maior force essa adaptação.
acredito que uma estrutura funcional mínima não deve ser vista como uma prisão, mas como um ambiente intencionalmente projetado. john cutler nos lembra que, embora ninguém goste da palavra "processo", um produto é, em essência, "um conjunto estruturado de interações e restrições, projetado para produzir certos resultados". a questão, portanto, não é rejeitar a estrutura, mas desenhar uma que seja eficaz. uma estrutura que sirva às pessoas, como freeman aponta, sendo uma "bênção para a pessoa sobrecaregada".
isso não quer dizer, contudo, que a desordem não tenha seu papel. pensando em sistemas, o caos pode ser um estágio funcional e necessário. quando uma estrutura antiga se torna tão rígida que impede a evolução, uma fase de caos pode ser a única maneira de "descongelar" o sistema. é a destruição criadora que limpa o terreno, quebra as premissas antigas e força a exploração de novas possibilidades.
como um incêndio que renova a floresta, é um processo transitório, turbulento e desconfortável, mas que cria as condições para que uma nova ordem, mais adaptada, possa emergir das cinzas. o perigo que freeman aponta não está nesse caos transitório e funcional, mas sim na romantização da desordem como um destino final, como um estado permanente.
o que torna essa discussão ainda mais rica é que o próprio john cutler parece navegar nessa tensão. em seu artigo "review notes: shape up" (9 de dezembro de 2019), ele elogia a abordagem da basecamp por seus princípios, como "duração fixa, escopo variável", a ênfase em "limitar o trabalho em progresso" e a "crítica válida" ao excesso de rituais e custos de planejamento do scrum. ele mesmo já propôs experimentos, como seu modelo de trimestre "2-6-4-1", que utiliza um bloco de foco de seis semanas para "entregar algo significativo aos clientes".
isso demonstra que, embora o artigo "the gradual fall..." capture uma frustração real com as formalidades, o próprio cutler reconhece o valor de estruturas intencionais que criam foco e limitam o escopo para permitir a entrega. a questão, portanto, não parece ser "estrutura vs. ausência de estrutura", mas sim "qual tipo de estrutura nos liberta dos problemas que vemos?".
é buscando esse equilíbrio — reconhecendo a necessidade de romper com o antigo e a importância de projetar o novo — que venho desenhando e experimentando um caminho possível.
não se trata de "a solução", mas de uma abordagem intencional, uma entre várias possíveis, para navegar nesses dilemas.
essa abordagem, que venho nomeando como foco & fôlego, observa padrões de “força-tarefa”, bebe da fonte do shape up (da 37signals/basecamp) e se alimenta de minhas reflexões sobre profissionais híbridos com o uso de i.a. e a evolução de product ops.
a ideia geral, que busca aplicar vários dos "princípios para uma estruturação democrática" de freeman, se baseia em elementos como:
delegação clara de autoridade: através de uma "mesa de apostas", onde as decisões de investimento de tempo são explícitas e comunicadas a todos.
responsabilidade e foco: em ciclos de tempo fixo, a equipe selecionada tem a autoridade e a responsabilidade de entregar o melhor resultado possível dentro do "apetite" definido.
distribuição de poder e alocação criteriosa: ao tratar o tempo como um recurso a ser "apostado", forçamos uma alocação mais criteriosa, e o escopo variável distribui a autoridade da implementação para a equipe.
a ideia não é trocar um conjunto de jargões por outro, nem substituir uma burocracia pesada por outra. a intenção é desenhar uma estrutura que seja intencionalmente enxuta, evolutiva e adaptável. uma estrutura que sirva às pessoas que fazem o trabalho — e que possa ser questionada e alterada por elas quando deixar de servir. é encontrar, como conclui freeman, um meio-termo entre a dominação e a ineficácia.
uma boa estrutura se parece menos com um destino final e mais com uma prática de jardinagem. seu valor não está em prometer a paisagem ideal, mas em nos ajudar a navegar entre os dois perigos que esta conversa revela. de um lado, ela nos previne do "teatro" que se fossiliza em burocracia messiânica — que cria tabus, artefatos míticos e a fantasia de nos salvar da complexidade, frequentemente apenas a substituindo por uma complicação exaustiva — do outro, nos ampara contra a "tirania" que emerge do caos, onde o poder arbitrário e os conflitos prosperam na ausência de regras explícitas.
o seu propósito é cultivar um equilíbrio funcional. preparar um solo fértil e podar os excessos para que o trabalho possa fluir, resultando em autonomia para focar no que importa.
a frustração de john cutler é um bom ponto de partida. talvez a resposta não seja queimar o mapa, mas, juntos, desenharmos um que seja mais simples e claro.