[Texto de 3/julho/2020]
Antes de iniciar, quero lembrar que metas podem ter mais de uma definição dependendo do contexto. Para evoluir esse ensaio, precisei assumir uma definição, que foi essa: desempenho, conquista ou impacto a ser alcançado, normalmente fora de nosso controle, sem grande conhecimento do que fazer para alcançar e comumente dentro de um prazo determinado.
Aqui nesse texto em específico, pode acontecer de eu utilizar a palavra objetivo com o mesmo significado de meta. Isso não quer dizer que em qualquer contexto essas palavras sejam sinônimas.

Sumário
Resumo — TL;DR
Metas: funções, perigos e alternativas
Funções das metas
…Impulso para ações alinhadas
…Foco
…Recompensa e punição
…Criar um futuro idealizado
…Manifestação do que é importante
…Maximização de resultado
…Visibilidade dos efeitos e discussão contínua
Perigos
…Ações míopes
…Maximização das métricas erradas
…Produtividade máxima
…Crescimento desenfreado! (ou, Growth) — Salve-se quem puder
Dar o melhor e utilizar práticas recorrentes
Conclusão
Resumo — TL;DR
Motivos comuns para organizações utilizarem metas
Impulso para ações alinhadas — porém as pessoas não sofrem déficit de ação alinhada, elas sofrem de déficit de significado, de falta de compreensão do propósito e de quais valores precisa honrar pra decidir algo.
Foco — a visão em túnel tem benefícios em determinados momentos e contextos, porém pode ser prejudicial se não for combinada com folga para reflexão e adaptação.
Recompensa e punição — porém ligar recompensa e punição a metas pode trazer mais prejuízos do que benefícios.
Criar um futuro idealizado — porém é necessário atenção para sentir e responder, conforme informações atuais, e não ficar amarrado a planos pré-fabricados.
Manifestação do que é importante — porém usar metas cascateadas, apesar de ser uma manifestação da organização e gerentes, é uma forma de coerção se não for algo voluntário.
Maximização de resultado — porém observar métricas erradas podem levar ações míopes, trapaças e prejuízos a outras partes do sistema.
Visibilidade dos efeitos e discussão contínua — o perigo com metas é que ao ter uma meta que não faça mais sentido para o momento ou métricas que não sejam as melhores representações do resultado, ainda será possível acreditar que esteja progredindo, mesmo que não seja a melhor direção e nem tenha os efeitos necessários.
Conjunto de alternativas às metas
Utilize propósitos alinhados e regras simples para tomadas de decisões e como estratégia;
Defina práticas recorrentes que informem o que realizar além de tornar visível o que foi realizado ou não. Foque no processo em vez de um destino fora de controle.
Mantenha um ritmo que garanta folga e permita espaço para reflexão e adaptação, além de experimentação;
Sinta e responda, conforme informações atuais, e não fique amarrado a planos pré-fabricados;
Em vez de cascatear metas ou instruções para ações, o importante é cascatear significado. É preciso garantir que as pessoas entendam o que é mais importante. Significado compartilhado cria alinhamento, e esse alinhamento é emergente, não coagido;
Manifeste o que é importante através de valores expressos, rituais e história transmitida;
Defina a estratégia em colaboração com as pessoas responsáveis por implementá-la minimizando o efeito de substituição da estratégia pelas métricas de acompanhamento;
Utilize múltiplas métricas para capturar melhor uma estratégia;
Utilize métricas de categorias diferentes (ex: quantidade e qualidade) e de partes diferentes do sistema organizacional;
Se questione se estão medindo o que é importante em vez do que é fácil;
Dê visibilidade dos efeitos do trabalho das pessoas;
Promova transparência, disponibilidade e compreensão de todas informações possíveis da organização para quem possa se beneficiar.
Incentive discussão sobre os efeitos e aprendizados continuamente.
Acompanhe e compare os resultados atuais com resultados próprios do passado recente, com muito cuidado.
Metas: funções, perigos e alternativas
É muito comum darmos por certo que precisamos de metas nas organizações para desenvolvimento e avanço em alguma direção.
Será que essa é uma verdade inquestionável? Vamos avaliar isso neste ensaio.
De acordo com Jennifer garvey Berger e Keith Johnston, autores do livro Simple habits for complex times — Powerful Practices for Leaders, uma meta é geralmente o resultado de uma única perspectiva (ou conjunto de perspectivas unificadas) decidindo sobre o único comportamento que mudará o sistema para algum estado desejado. Mas em um sistema complexo, ninguém pode saber qual única coisa pode mudar o sistema da maneira desejada.
As metas tendem a ser definidas porque são facilmente medidas e parecem estar conectadas para o problema em questão, mas muitas vezes não há uma ligação causal real entre a esperança de que a organização ou líderes têm e a meta que definem para tornar essa esperança uma realidade.
Também podemos entender metas como abstrações que no final só conseguem responder se conseguimos ou não alcançá-las, mas pouco dizem se foi o melhor que poderíamos ter feito.
Logo após alcançar uma meta, teremos outra e em seguida outra. E é isso.
Jason Fried, CEO da Basecamp, empresa com mais de 20 anos de mercado, em um determinado momento disse que “o motivo de eu não definir metas é porque elas são principalmente artificiais e você atinge a meta e fica feliz ou não a atinge e fica chateado. E se você atinge, você apenas cria outra. E tipo, qual é o ponto disto?”.
Já o psicólogo Adam Alter comenta em um artigo da Business Insider que mesmo que no fim você atinja a meta, você desde o início gastará a maior parte do seu tempo não atingindo-a. E esse estado de falha pode rapidamente impedir as pessoas de perseguir a meta que estabeleceram.
Para acrescentar, ele continua dizendo algo semelhante ao que o Jason disse: “uma vez atingida uma meta, o sentimento de alegria geralmente é passageiro. As pessoas sentem uma onda de felicidade, mas ela desaparece rapidamente à medida que um novo objetivo entra em foco.”
E quando você atinge uma meta mas não os resultados desejados com elas, geralmente atribuímos esse efeito às definições de metas erradas e gastamos mais tempo em fazer outras metas em vez de questionar a necessidade das metas.
O efeito contrário também pode acontecer: ao observar times e organizações que alcançaram um resultado que desejavam, algumas pessoas podem atribuir isso à utilização de metas. Porém, esquecem-se que muitos times e organizações que falharam em alcançar resultados desejados, possuíam metas parecidas.
Imagine um grupo de corredoras que irão participar de uma maratona. Boa parte delas possuem a mesma meta: vencer. Porém a maioria falhará. O viés de sobrevivência poderá fazer você acreditar que o que fez a primeira colocada vencer foi a utilização de meta.
Funções das metas
Vamos lá então, qual o motivo de usarmos metas?
Podemos resumir em alguns pontos:
Impulso para ações alinhadas
Foco
Recompensa e punição
Criar um futuro idealizado
Manifestação do que é importante
Maximização de resultado
Visibilidade dos efeitos e progresso
Essa lista não é exaustiva e nem definitiva. É uma amostra que permite termos uma visão geral do assunto.
Impulso para ações alinhadas
Acredito que tudo começa com a crença de que as pessoas precisam de uma meta para agir de forma alinhada. Mas, como Marcus Buckingman fala em seu livro Nines Lies About Work (em português, Nove Mentiras Sobre Trabalho), as pessoas não sofrem de déficit de ação alinhada, elas sofrem de déficit de significado, de falta de compreensão do propósito e de quais valores precisa honrar pra decidir algo.
Propósito
Ele diz que as pessoas não precisam saber o que fazer, elas querem saber o porquê.
— As pessoas compreendem o propósito? Elas sabem os valores que precisam honrar para as tomadas de decisões?
E, de acordo com a autora do livro Thinking in Systems — A Primer, Donella H. Meadows, sistemas complexos como organizações podem ter propósitos dentro de propósitos. Manter sub-propósitos e propósitos gerais em harmonia é uma função de sistemas com sucesso.
O sistema maior coordena e melhora o funcionamento dos subsistemas, que por sua vez regulam a si mesmos além de servirem o propósito do sistema maior. Eles podem tomar conta, regular e manter a si mesmos (auto-organização) além de servir às necessidades do sistema maior, enquanto o sistema maior coordena e melhora o funcionamento dos subsistemas.
Regras simples como estratégia
Além de propósitos aninhados e alinhados, outro padrão importante, especialmente em contextos VICA (Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo) é a utilização de regras simples, apenas um punhado, como estratégia que orienta tomadas de decisões e permite reação rápida e eficiente às mudanças do mercado.
Regras simples permitem decisões serem tomadas rapidamente, sem um computador; são frugais, na medida em que requerem apenas informações limitadas para chegar a uma decisão; e claras, na medida em que expõem os fundamentos sobre os quais as decisões são tomadas.
Por serem facilmente memorizáveis têm a probabilidade de serem adotadas e usadas de forma consistente. E, a clareza delas, gera confiança, revelando como as decisões são tomadas e indicando onde podem ser melhoradas.
Elas permitem que tomadores de decisões usem sua experiência, julgamento ou bom senso para ações rápidas em contextos complexos.
Veja mais abaixo no texto sobre o cuidado de se criar essa estratégia em colaboração com as pessoas responsáveis por implementá-la.
(Se tiver curiosidade, veja também sobre estratégias even over)
Foco
Metas podem auxiliar uma pessoa ou grupo a se concentrar e focar em algo. Elas podem favorecer a visão em túnel: o hábito ou tendência de apenas vermos ou focarmos em uma única prioridade, enquanto negligenciamos ou ignoramos outras prioridades importantes.
A visão em túnel tem benefícios em determinados momentos e contextos.
Porém, ela pode se tornar prejudicial se não for combinada com folga (slack, em inglês).
Na pesquisa In Praise of Slack: Time Is of the Essence é dito que “a folga organizacional, em termos de tempo e [recursos humanos] que não estão constantemente sujeitos a medidas de eficiência a curto prazo, é importante para as organizações que lidam com os desafios do século XXI”.
E continua dizendo que “[…] as demandas futuras por flexibilidade estratégica e por integrar aprendizado e conhecimento em todas as organizações destacam a necessidade de reexaminar a importância do tempo no trabalho organizacional — e reconhecer que todos os recursos organizacionais não podem ser comprometidos com os esforços imediatos de produção, se quisermos ter tempo para prestar atenção, pense e se beneficie do conhecimento adquirido”.
Apesar de meus questionamentos no trecho acima com a expressão “recursos humanos” em vez de pessoas, o trecho ainda traz informações relevantes.
Então, além de propósito e regras simples comentados anteriormente, garanta folga que permita espaço para reflexão e adaptação.
Recompensa e punição
Apesar de colocar “recompensa e punição” como função de uma meta, acredito que está mais para uma ferramenta utilizada para aumentar a probabilidade de pessoas atingirem metas do que propriamente uma função.
Algumas pessoas acreditam que usando recompensa e punição irão engajar mais as pessoas e garantir os resultados esperados.
Porém, também é possível que algumas organizações acreditem que uma das funções das metas seja de fato recompensar colaboradoras de maior performance e punir as de baixa performance.
Acreditam que um dos jeitos de medir essa performance seja através das metas: bateu ou não bateu; o quanto ficou distante; o quanto superou.
Seja qual for a interpretação, recompensa e punição ligadas a metas individuais podem criar competição desonesta no time e prejudicar a colaboração. Trapaças poderão ocorrer pelo desejo da recompensa ou pelo medo da punição.
Já com recompensa e punição ligadas a metas de grupo — não individuais —a colaboração pode ser menos prejudicada, já que a ideia é incentivar o grupo trabalhar junto em direção à mesma meta sofrendo as mesmas consequências.
Porém, nesse caso, há um outro perigo. Algumas pessoas podem se engajar menos e deixar a responsabilidade para outras pessoas do time pois será recompensada ou punida igualmente de acordo com o resultado do grupo.
Se uma pessoa acredita que o time está dedicado e perto de atingir a meta, ela pode desacelerar e até desengajar se não for algo que ela acredite valer o esforço. Se ela acredita que o time não atingirá a meta, e não acredita que o esforço dela será de grande ajuda ou não está temerosa em ser punida já que mais pessoas serão punidas junto com ela, ela pode ter o mesmo comportamento do exemplo anterior.
Uma forma de minimizar esses efeitos seria avaliar a proporção do impacto de trabalho individual no resultado da meta ou avaliar o esforço individual depositado para atingir a meta. Porém, não é fácil medir esforço ou impacto individual nas metas em trabalhos complexos realizados em conjunto que envolvem conhecimento e criatividade.
Além disso, os perigos relacionados às metas apresentados mais abaixo nesse texto continuarão e podem ser acentuados já que as pessoas poderão encontrar mais motivos para fazer de tudo para atingir as metas.
Recompensas e punições devem ser utilizadas com muito critério e atenção, observando como isso afeta a organização inteira e o comportamento das pessoas. Descubra o que deseja resolver com recompensas e punições, quais alternativas existem nesse escopo, e se essa é a melhor ferramenta.
Criar um futuro idealizado
No livro “The Antidote: Happiness for People Who Can’t Stand Positive Thinking”, Oliver Burkeman comenta que “o que motiva nosso investimento em metas e planejamento para o futuro, na maioria das vezes, não é um reconhecimento sóbrio das virtudes da preparação e do futuro. Pelo contrário, é algo muito mais emocional: quão profundamente desconfortáveis somos deixados por sentimentos de incerteza”.
E ele continua dizendo que “diante da ansiedade de não saber o que o futuro reserva, investimos cada vez mais em nossa visão preferida desse futuro — não porque isso nos ajudará a alcançá-lo, mas porque nos ajuda a livrar-se de sentimentos de incerteza no presente”. A incerteza nos leva a idealizar o futuro.
Burkeman argumenta que “poderíamos aprender a nos sentir mais à vontade com a incerteza e a explorar o potencial oculto nela, tanto para nos sentirmos melhor no presente quanto para obter mais sucesso no futuro”.
“Meu único plano é continuar trabalhando. … Eu gosto de guiar o barco a cada dia, em vez de plano muito à frente no futuro.” — Henry Singleton. De acordo com Warren Buffett, Henry Singleton ‘tem o melhor registro operacional e de implantação de capital nos negócios americanos. . . se alguém pegasse os 100 melhores graduados da escola de negócios e fizesse uma combinação de seus triunfos, seu histórico não seria tão bom quanto o de Singleton’.
Em qualquer sistema complexo, é extremamente difícil prever como a alteração de uma variável afetará outras.
Fazer planos de onde se quer chegar são úteis para avaliar o problema, não a solução. Planos nos ajudam a entender a realidade atual, não o futuro.
Restringir as ações das pessoas a planos pré fabricados, pode acabar revelando o quanto você ou sua empresa estão fora de contato com a realidade atual.
É necessário sentir e responder, conforme informações atuais, e não ficar amarrado a planos pré-fabricados.
Manifestação do que é importante
Quando olhamos para uma meta conseguimos fazer suposições do que é mais importante para uma pessoa ou organização. Mas não significa que essa manifestação precisa ser feita necessariamente através de metas.
Marcus Buckingman diz que é possível manifestar o que é importante através de valores expressos, rituais (conscientes ou inconscientes) e história transmitida.
Os valores deveriam ser expressos não só pelo que está escrito nas paredes, pois nem precisariam, mas sim em tudo o que você faz, como seu escritório é estruturado (fisicamente ou virtualmente), quais comportamentos são tolerados, como o sistema recompensa as pessoas, etc. Já os rituais, sejam eles conscientes ou inconscientes — as coisas que você faz repetidamente — comunicam às pessoas o que é significativo para você.
Além disso, Marcus diz, muitos dos melhores líderes são contadores de histórias, não no sentido de escrever um romance ou roteiro, mas porque eles cascateiam significado através de vinhetas, anedotas ou histórias contadas em reuniões, em troca de emails ou em telefonemas. Eles estão sempre contando essas pequenas histórias, porque as histórias que eles escolhem contar transmitem o que valorizam. Histórias dão sentido ao mundo: são significados, feitos humanos.
Marcus ainda diz que objetivos cascateados são uma forma de coerção para gerentes que ainda acreditam estritamente no mecanismo de comando e controle.
A única chance de um objetivo ser útil, com ressalvas, é quando ele é criado voluntariamente pelas próprias pessoas como expressão do que consideram mais importante e significativo. Não precisa ser SMART, ter KPI ou OKRs.
Enquanto objetivos cascateados são um mecanismo de controle, significado cascateado é um mecanimos de liberação. É o significado compartilhado que cria alinhamento, e esse alinhamento é emergente, não coagido.
Então, em vez de cascatear metas ou instruções para ações, o importante é cascatear significado. É preciso garantir que as pessoas entendam o que é mais importante.
Maximização de resultado
A meta também serve para promover a maximização de um resultado esperado. Por isso, é comum vermos métricas se tornando metas.
Como diz a lei de Goodhart, quando uma medida se torna uma meta, ela deixa de ser uma boa medida.
Tem até um exemplo famoso da lei de Goodhart sobre uma fábrica de pregos: quando as pessoas tinham como metas o número de pregos, produziam muitos pregos minúsculos inúteis e quando tinham metas com base no peso, produziam um punhado de pregos gigantes.
Se você avaliar as pessoas por essas métricas, você estará influenciando o comportamento delas e o resultado. Como a máxima diz, “Diga-me como me medes e eu te direi como me comportarei”.
As métricas que observamos funcionam como representantes de resultados do sistema. Porém, muitas vezes as pessoas esquecem que o resultado desejado não é que um número seja melhorado, mas que uma situação seja melhorada. Mas há muitas razões para que isso não seja o caso: um número que é melhorado às custas de outras partes do sistema, a falha do número em servir com precisão como indicador, distorção dos números, etc.
Isso se relaciona com algo chamado “efeito cobra”: quando uma tentativa de solução para um problema na realidade o agrava ainda mais. Uma estimulação incorreta pode causar um efeito perverso com consequências não-intencionais.
“Quanto mais um indicador social quantitativo for usado para a tomada de decisões sociais, mais sujeito estará às pressões de corrupção e mais adequado será distorcer e corromper os processos sociais que se pretende monitorar”. — Lei de Campbell
No texto “Don’t Let Metrics Undermine Your Business” (em português, “Não deixe que as métricas prejudiquem seus negócios”) é contado que uma empresa pode facilmente perder de vista sua estratégia e se concentrar estritamente nas métricas destinadas a representá-la.
Para um exemplo extremo desse problema, é contado o caso da Wells Fargo, onde os funcionários abriram 3,5 milhões de contas de depósito e cartão de crédito sem o consentimento dos clientes, em um esforço para implementar sua infame estratégia de “venda cruzada”.
Os custos desse desastre foram enormes:
muitos milhões em custos financeiros com multas (mais de 180 milhões de dólares);
reembolso de taxas a clientes (mais de 6 milhões de dólares);
ações na justiça (mais de 140 milhões);
e perdas enormes de demanda de serviços e confiança, o que também deve ter gerado perdas financeiras gigantescas.
E daí vem a pergunta: esses resultados devastadores foram simplesmente consequências naturais de se ter uma estratégia ruim?
Não. O problema não foi bem a estratégia. Um exame mais detalhado sugere que a Wells Fargo nunca teve uma estratégia de venda cruzada. Ela tinha uma métrica de venda cruzada.
O que acontece é que as pessoas tentarão alcançar as metas definidas da forma mais fácil possível.
Isso nos mostra alguns perigos:
Temos a tendência de substituir a estratégia por métricas;
Ao utilizar métricas para avaliação e como meta, você estará influenciando o comportamento das pessoas e talvez um resultado diferente do que o desejado;
Uma única métrica pode incentivar interações não desejadas com outras partes do sistema;
Para superar esses e outros perigos, experimente:
definir a estratégia em colaboração com as pessoas responsáveis por implementá-la minimizando o efeito de substituição da estratégia pelas métricas de acompanhamento. Esse ponto está diretamente ligado à ideia das regras simples como estratégia, mais acima no texto, e por isso se faz válido para aquele contexto.
utilizar múltiplas métricas para capturar melhor uma estratégia (1,2);
utilizar métricas de categorias diferentes (ex: quantidade e qualidade) e de partes diferentes do sistema organizacional;
se questionar se estão medindo o que é importante em vez do que é fácil;
criar um ritmo para reflexão e adaptação da estratégia e métricas.
Visibilidade dos efeitos e discussão contínua
Em geral, ao utilizar metas, as pessoas se mantêm atentas aos efeitos de seus trabalhos para saberem o quanto avançaram em direção à meta.
Para esse acompanhamento é necessário a visibilidade dos efeitos e o acesso às informações.
Essa visibilidade é um loop de feedback importante para adaptação do que for necessário e para tomada de decisões.
Porém isso é possível de realizar sem metas.
O perigo com metas é que ao utilizar metas que não façam mais sentido para o momento ou métricas que não sejam as melhores representações do resultado, ainda será possível acreditar que esteja progredindo, mesmo que não sejam a melhor direção e nem os efeitos esperados.
No livro Thinking in Systems — A Primer, é contado que perto de Amsterdã, havia um subúrbio de casas iguais construídas no mesmo período. Por razões desconhecidas, eram diferentes em apenas um único aspecto: o medidor elétrico em algumas foram construídos no porão e em outras no hall da frente.
Os medidores tinham uma bolha de vidro onde era possível ver uma roda de metal que girava do lado de dentro numa velocidade relacionada ao uso de energia. Além disso tinha um mostrador de quilowatts-hora acumulados.
Durante uma crise de energia no início dos anos 70 os holandeses começaram a prestar mais atenção no uso de energia e descobriram que algumas casas nessa área usavam um terço a menos de eletricidade do que outras casas.
Curiosamente, a diferença que encontraram era a posição do medidor elétrico. As famílias que tinham consumo mais alto tinham os medidores no porão, e as que estavam usando menos tinham os medidores no hall da frente fazendo com que quando as pessoas passavam em frente observassem o metal girando e o seu consumo.
Ou seja, incentive a visibilidade dos efeitos do trabalho das pessoas — quantitativo e qualitativo — e promova transparência, disponibilidade e compreensão de todas informações possíveis da organização para quem possa se beneficiar.
Com isso, incentive discussão sobre os efeitos e aprendizados continuamente: o que tem funcionado, o que não tem funcionado, o que podemos fazer para melhorar, o que tem influenciado, o que tem atrapalhado, o que não faz mais sentido?
Uma forma de acompanhamento das métricas que pode potencializar conversas para reflexões e aprendizados é a comparação dos resultados atuais com resultados próprios do passado recente, identificando a média e o desvio padrão para cima e para baixo como um intervalo a se obervar.
Porém, lembre-se:
quanto mais complexo for o contexto das métricas, mais difícil e, e com menos informação, se torna uma comparação de resultados ao longo do tempo.
a comparação não dita o que será o futuro. Resultados próprios do passado recente podem servir para apresentar uma tendência — caso seja um contexto simples ou óbvio, porém se torna um dado sem compromisso de que irá se realizar, servindo apenas para reflexões e aprendizados.
resultados históricos não possuem um significado em si mesmos e por isso não necessariamente informam se, ao comparar, o resultado presente seja bom ou ruim. A comparação pode ajudar a investigar mais e descobrir outras mudanças que ocorreram além desses resultados observáveis.
é preciso cuidado com o que desejamos aprender e qual o significado que daremos ao que observamos.
dados coletados, querendo ou não, são informações parciais e arbitrárias, e não contemplam todo o contexto e implicações de um momento presente.
Perigos
Além dos perigos já comentados nos tópicos acima, há alguns outros.
Ações míopes
Metas limitam sua ação e podem evitar que você explore caminhos mais importantes para o momento atual.
Imagine no contexto de OKRs, algo muito conhecido no mundo de startups. Ao definir os OKRs, é possível que as equipes foquem apenas em bater os KRs e esqueçam-se de refletir sobre o O.
No meio do trimestre ou ano:
Será que os KRs ainda são os melhores representantes de uma situação desejada?
Será que os números alvos dos KRs ainda são os melhores?
Será que irão incentivar as pessoas alcançarem uma meta a qualquer custo, mesmo prejudicando outras partes da organização, produto e times?
Será que há outras formas de realizar o O e que não são refletidos nos KRs?
O desafio é que assim que uma equipe tem KRs para bater, o foco pode se tornar os KRs e não o O.
Maximização das métricas erradas
Apesar de já ter falado sobre o perigo de métricas como metas e da importância da transparência das informações, ainda vale falar do perigo da simples tentativa de observar e maximizar métricas erradas.
Quando as organizações pensam em crescimento de seu produto, logo começam a observar métricas de comportamento. Desejam melhorar taxas de conversão e aumentar a eficiência de seu funil. Porém, ao observar métricas de comportamento você tentará maximizá-las, influenciando ainda mais o comportamento das pessoas mas não necessariamente atendendo melhor suas intenções e valores.
Se, por exemplo, ao tentar melhorar um produto você utilizar métricas de comportamento como meta, poderá estar maximizando algo que desconsidera as razões das pessoas e por isso diminuir a confiança das pessoas com o nosso produto.
Por exemplo, uma pessoa desejando aprofundar o conhecimento sobre determinado tema pode entrar no Youtube e ao se deparar com seu feed, começar assistir outros vídeos aleatórios e até curtí-los, abrindo mão de sua motivação inicial. Porém, numa reflexão posterior a pessoa pode se arrepender do tempo gasto pois não realizou sua intenção maior e nem aproveitou para manifestar seus valores de outra forma, dando atenção à sua família ou realizando outras atividades.
Se o Youtube olha apenas métricas como visualizações e curtidas, ele pode influenciar o comportamento das pessoas mas não conseguir medir a satisfação delas com os seus interesses iniciais.
O filósofo, cientista social e designer Joe Edelman tem um artigo incrível com o título “Is anything worth maximizing?” (em português: vale a pena maximizar alguma coisa?) sobre o assunto.
Ele conta que a confiança entre pessoas, organizações e produtos acontece quando (re)conhecemos as motivações de cada um e trabalhamos com essas motivações compartilhadas.
Aqui, há uma oportunidade para produtos e organizações cooperarem conhecendo as razões das pessoas e buscando satisfazer suas necessidades.
As pessoas têm interesse em empresas que entendem e atendem suas razões.
Produtividade máxima
Organizações são sistemas complexos e para se manter capaz de se adaptar e persistir em um ambiente variável é necessário resiliência, dentre outos elementos.
Resiliência pode ter inúmeras definições, mas de forma geral, resiliência é a capacidade de voltar à forma depois de ter sido esticado ou pressionado.
De acordo com Donella H. Meadows, a resiliência é algo que pode ser muito difícil de ver, a menos que você exceda seus limites, sobrecarregue e danifique os loops de equilíbrio e a estrutura do sistema se quebre. E, como pode não ser óbvia sem uma visão geral do sistema, as pessoas costumam sacrificar a resiliência pela estabilidade, produtividade ou alguma outra propriedade do sistema mais imediatamente reconhecível.
Manter o sistema funcionando na sua maior capacidade para extrair o máximo possível, pode ser um perigo. Minha hipótese é que metas sucessivas com a intenção de ter o máximo de produtividade por um longo período podem danificar o sistema e tirar sua resiliência.
Crescimento desenfreado! (ou, Growth) — Salve-se quem puder

David Heinemeier Hansson, um dos fundadores da Basecamp diz que “não há Deus mais alto no Vale do Silício do que crescimento. Nenhum sacrifício grande demais para o seu altar de desejo. Enquanto você mantiver sua curva exponencial, todos os seus pecados serão esquecidos na saída”.
Ele continua dizendo que “é através dessa lente exponencial que comer o mundo se torna não apenas um lema de software em geral, mas uma missão para todo unicórnio aspirante e seu modelo de negócios. ‘Se tornar viral’ de repente assume um significado chocante, honesto e surpreendentemente literal. O objetivo do vírus é se espalhar o mais rápido possível e corromper o maior número possível de células. Como diabos esse entusiasmo tão debochado se tornou o mais alto pedido para toda uma geração de empreendedores?”.
De acordo com Hiten Shah, co-fundador da FYI, a maioria das startups busca um crescimento rápido e precoce a qualquer custo. Eventualmente, essas startups não conseguem acompanhar esse ritmo e seu crescimento diminui.

Donella H. Meadows, diz que “o objetivo de manter o mercado competitivo tem que superar o objetivo de cada corporação de eliminar seus concorrentes (e fazer lavagem cerebral em seus clientes e engolir seus fornecedores), assim como nos ecossistemas, o objetivo de manter as populações em equilíbrio e evoluir deve superar o objetivo de cada população se reproduzir sem limite”.
Hiten Shah comenta que “desde o início, o Basecamp criticou o crescimento pelo crescimento. Eles se concentraram em dar aos clientes o que os ajudaria e garantir que a empresa estivesse ganhando dinheiro”.

“[…] Faça mais do que você gasta. Não fique à frente. Não busque crescimento a todo custo. Não contrate mais do que precisa. Cresça de forma sustentável, permaneça lucrativo e permaneça no negócio” — Jason Fried
Dar o melhor e utilizar práticas recorrentes
Ao realizar algo, podemos ter como intenção fazer o melhor que podemos.
No livro “A Guide to the Good Life: The Anciente Art of Stoic Joy”, o autor William B. Irvine, chama isso de objetivos internos. São objetivos que estão sob nosso controle. Já os objetivos externos estão fora do nosso controle.
No livro o autor comenta de tornar como objetivo dar o seu melhor.
Essa estratégia reconhece a impossibilidade de prever o futuro e reduz significantemente a angústia em sua vida: o sentimento que você falhou em realizar algum objetivo.
Jason Fried sugere essa mesma ideia: em vez de se concentrar em objetivos específicos, faça o melhor que puder.
Um cuidado: essa intenção de “dar o melhor” tem que vir da própria pessoa. Não adianta ser uma ordem de alguém de cima em uma hierarquia. Além disso, é necessário que a pessoa dê o seu melhor em direção ao propósito do grupo.
Para dar o nosso melhor é útil termos um propósito bem definido, regras simples para tomadas de decisões e práticas recorrentes que estejam conectadas com ambos.
Práticas recorrentes também são conhecidas como sistemas, algo sob nosso controle. Recomendo a leitura dos textos Think In Systems — Not In Goals e SMART goals are not so smart: make a PACT instead para explorar mais sobre o assunto.

Vamos para um exemplo.
Imagine uma iniciativa de criar um produto que resolva o problema XYZ para um determinado público e que seja rentável para a organização.
Um time (A) resolve utilizar meta: ter 1000 pessoas pagantes por mês.
Outro time (B), sem meta, decide ter como práticas recorrentes:
semanalmente conversar com pessoas do público que possui o problema
semanalmente validar ideias com um pequeno público
semanalmente compartilhar aprendizados que tiveram nas conversas com o público e com as validações com todas pessoas envolvidas na tentativa de resolução do problema XYZ
quinzenalmente discutir sobre a forma de trabalho e o que podem melhorar, incluindo discussão sobre as práticas recorrentes e a estratégia
etc
Ao final de 3 meses qual time, A ou B, você acredita que terá mais aprendizado e maior chance em encontrar um — ou mais — produtos ligado ao propósito e que permitam progressão na vida das pessoas em relação ao problema XYZ?
Uma meta nada diz sobre como chegar a um resultado desejado. É apenas um alvo distante, sem informação sobre os próximos passos que você deverá tomar.
Agora, se você elabora práticas recorrentes que informem o que fazer e treinar para executar uma estratégia, melhorar habilidades, competências e aprendizados individuais, então, talvez você não precise das metas.
“Somos o que fazemos repetidamente. Excelência, então, não é um ato, mas um hábito” — Aristóteles
David Marquet, autor de livros sobre liderança e comandante aposentado de submarino da Marinha dos Estados Unidos, compartilha a ideia de que podemos medir competência perguntando às pessoas quanto tempo elas investem em aprendizado por si mesmas. Isso pode ser um indicador melhor do que apostar em um número.
Scott Adams, em seu livro “How to Fail at Almost Everything and Still Win Big: Kind of the Story of My Life”, diz que “As pessoas orientadas a objetivos vivem em um estado de falha contínua de pré-sucesso, na melhor das hipóteses, e falha permanente na pior, se as coisas nunca derem certo. As pessoas de sistemas são bem-sucedidas toda vez que aplicam seus sistemas, no sentido de que fizeram o que pretendiam fazer”.
Essa é uma grande diferença em termos de manter a energia das pessoas e times em direção ao propósito.
A alternativa pode ser transformar suas metas em práticas, se comprometer com um processo em vez de metas e dar o seu melhor.
Conclusão
Acredito que temos boas alternativas para mantermos nossas vidas e os negócios prosperando de forma saudável e evitando todos os perigos das metas, além de evitar o investimento em tempo e dinheiro para tentar definir, medir e recompensar.
Não quero ser injusto ou ingênuo: me deparei com pesquisas que concluem uma maior performance quando metas são utilizadas em comparação a um grupo de pessoas sem metas ou mesmo a um grupo com instrução de “dar o seu melhor”. Porém, melhor performance não indica inovação ou progresso a médio-longo prazo. Algumas coisas não têm impacto positivo imediato.
E, além disso, várias dessas pesquisas e experimentos relatam limitações, comentam sobre perigos, e principalmente:
não parecem avaliar o impacto de metas no sistema como um todo
são avaliadas em contextos de curto prazo — não permitindo avaliar os perigos a médio prazo — e,
não comparam com algum grupo seguindo o conjunto de alternativas que abordei no texto.
Com isso, minha hipótese é que, talvez, um dos poucos casos quando as metas possam ser úteis mas não necessárias, dadas as alternativas, seja em uso esporádico e pontual para situações de alto risco, na necessidade de acelerar algum resultado para sobrevivência da organização, sabendo que estará assumindo todos os perigos que elas trazem.
Antes de decidir pelo uso de metas, procure entender o que você quer resolver ou incentivar, e avalie outras práticas específicas para ajudar com suas necessidades. Avalie o sistema organizacional como um todo e como isso poderá afetar outras partes do sistema. Não foque apenas em um resultado desejado de forma independente.
Avalie as alternativas descritas nesse texto.
Se desejar, consulte também sobre a tecnologia social Contornos e as referências listadas lá para te auxiliar em seus desafios organizacionais.
Um problema em ter metas para bater é que você pode ficar míope com esse resultado binário — atingiu ou não atingiu — e abrir mão do mais importante: um processo que te ajude a…
entregar resultado
refletir
aprender
evoluir competências
reconhecer progresso
experimentar
e adaptar
…para seguir em direção ao propósito de forma sustentável.
Obrigado por chegar até aqui.
Nesse momento, pode ser útil reler o tópico Resumo — TL;DR localizado no início do texto.
Agradecimento
Obrigado Davi Gabriel, Laís Lara Vacco e Rodrigo Bastos pelo apoio na primeira versão em Julho/2020.
Algumas referências
Why one tech CEO never sets goals: ‘They’re mostly artificial’
Thinking in Bets: Making Smarter Decisions When You Don’t Have All The Facts — Book Notes
A top psychologist says there’s a huge misconception about setting goals
Simon Sinek: Achieve success by seeing life as an “infinite game”
Simon Sinek’s 5 Steps for Mastering the “Infinite” Game of Leadership
How an Anti-Growth Mentality Helped Basecamp Grow to Over 2 Million Customers
Goal Setting: A Scientific Guide to Setting and Achieving Goals
Sobre simple rules:
Simple Rules for a Complex World by Donald Sull and Kathleen M. Eisenhardt
Creating Simple Rules for Complex Decisions by Jongbin Jung, Connor Concannon, Ravi Shroff, Sharad Goel, and Daniel G. Goldstein
Strategy as Simple Rules by Kathleen M. Eisenhardt and Donald Sull